domingo, 29 de junho de 2014

POR SER POETA

    NALDOVELHO

    Por ser poeta
    eu posso nascer inúmeras vezes,
    ser pessoas diferentes,
    viver outras vidas,
    adormecer por aqui
    e acordar longe,
    numa outra cidade,
    posso ter qualquer idade,
    me apaixonar um milhão de vezes,
    ser ternura, ser loucura,
    ser delicadeza...
    E ainda me dar o luxo
    de transformar tudo em poema.
    Posso ser pedra, posso ser janela,
    posso ser porta e de preferência aberta,
    posso morrer e renascer crisântemo,
    ser beija-flor ou águas claras de um rio,
    ser vento macio ou animal no cio,
    ser perfume e eu escolheria sempre alfazema,
    ser música suave a embalar suas tardes,
    posso ser teclas de um piano,
    melodia de desenganos,
    posso ser remédio a curar sua nostalgia,
    posso ser noite encharcada de orvalho,
    posso ser palavra cheia de significados,
    posso ser madrugada, posso ser magia!

    Por ser poeta eu posso quase tudo,
    só não consegui ainda ser poesia.

sábado, 28 de junho de 2014

O TEMPO QUE EU TENHO

    NALDOVELHO

    O tempo que eu tenho
    abre sulcos no meu corpo
    e expõe tramas de veias,
    vida que escoa impunemente
    engolida pelas areias
    de uma ampulheta que ninguém vê.

    A dança do tempo que eu tenho
    adora os compassos de uma valsa,
    e a melodia pulsa pelas ruas da cidade,
    e diz que a existência é uma criança,
    que mesmo depois, continuará a florescer.

    E eu que já sangrei tantas vezes,
    que morri e amanheci poeta,
    que fui ao mesmo tempo
    aspereza e delicadeza,
    sei que mesmo depois
    de desembocar no mar,
    continuarei a navegar.

    O tempo que eu vivo
    deixa marcas em minha alma
    e são elas que vão me diferenciar
    das outras gotas no mar. 

E EU NEM GOSTO MUITO DE TANGOS

    NALDOVELHO

    Aqui jaz uma sinfonia
    de notas dissonantes,
    desgastes constantes,
    orgasmos solitários,
    porta do quarto trancada,
    janela escancarada
    e um vento perverso
    a tirar as coisas do lugar.

    Aqui jaz uma sinfonia
    de harmonias conflitantes,
    garrafa de vinho tinto e rascante,
    o cinzeiro lotado de cigarros
    e um tango confuso e dolorido,
    violino, contrabaixo, bandoneon e piano,
    na voz embargada de um cantor
    que até hoje não conseguiu chorar.

    Aqui jaz uma sinfonia
    num monte de poemas rasgados,
    mês de junho, outono-inverno,
    eu preciso parar de beber,
    eu preciso parar de fumar
    e eu nem gosto muito de tangos,
    são dramáticos demais,
    sangram e me fazer sofrer.


terça-feira, 24 de junho de 2014

A BOCA DA NOITE (R)

   NALDOVELHO

   A boca da noite
   engoliu meus sonhos
   e deixou fim de festa,
   ardência nos olhos,
   nebulosidade de outono,
   prenúncio de inverno,
   vento frio, abandono.
   Deixou também nostalgia,
   um álbum de retrato,
   terceira gaveta,
   lado esquerdo do armário,
   e deixou poesia
   molhada de orvalho,
   cicatrizes espalhadas pelo corpo,
   algumas ainda doem,
   outras são como medalhas,
   batalhas travadas
   pelas trilhas desta vida.

   A boca da noite
   engoliu meus sonhos,
   mas forjou em minha alma
   uma vontade inquebrantável
   de continuar na jornada,
   pois ainda que eu morra mil vezes,
   no caminho continuarei,
   este é o meu rito sagrado,
   esta é a minha lei.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

OLHO SABIDO!

    NALDOVELHO

    Tem olho que devora as imagens
    por temer a possibilidade
    de um dia ter que caminhar no escuro.
    Muito tolo este olho,
    que tem a pretensão
    de aprisionar em sua retina a luz.

    Mas tem aquele outro olho
    que não tem medo das trevas,
    que respeita a luz de todas as coisas,
    buscando apenas com elas aprender
    a magia dos seus significados.

    Olho sabido este outro!

domingo, 22 de junho de 2014

A FIGUEIRA E A AZALEIA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

    
    NALDOVELHO

    Outro dia numa conversa
    reservada com uma figueira
    que eu tenho no quintal lá de casa,
    ela me confidenciou entristecida,
    estar apaixonada por azaleia
    e que o jasmim, por inveja ou ciúme,
    havia formalizado uma denúncia
    aos rigores do monsenhor.

    Como aqui lá em casa é uma monarquia,
    eu levei o caso à rainha
    que prontamente ordenou
    que eu verificasse se era recíproco,
    e assim sendo providenciasse um vaso enorme
    e para lá transplantasse azaleia,
    colocando-a ao lado do seu amor.

    Nunca vi uma azaleia tão florida,
    nem frutos com tanto sabor.

    Monsenhor ficou irritado
    e exasperado argumentou,
    mas eu prontamente lhe disse
    ser apenas um poeta,
    uma espécie de bobo da corte,
    e que apesar de ter acolhido
    as ordens com muito bom grado,
    eram ditames da rainha
    e que ali era um estado laico,
    portanto ele que ficasse quieto
    e parasse de nos causar dissabor.  



sábado, 21 de junho de 2014

POEMAS QUE PRECISAM SANGRAR - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

   NALDOVELHO

   Quando eu vejo o dia morrer
   lá pros longes daquele rochedo,
   fico aqui em meu canto
   a fuxicar no meu umbigo,
   na esperança de alguma história,
   coisa escondida em minha memória,
   casquinhas de velhas feridas,
   poemas que precisem sangrar.

   E aí, no parapeito de minha janela,
   eu coloco uma taça de vinho
   e deixo lá por um tempo
   ao alcance do sereno da noite
   e se possível da luz luar.
   Depois, bebo em pequenos goles,
   ao som de um trompete malvado,
   folha de papel ao meu lado...
   Coisa danada de boa,
   acreditar que através do poema
   eu ainda possa sonhar.

   Quando a noite já vai alta
   e a madrugada surge em meu quarto,
   carinhosamente eu lhe dou um abraço,
   pois sei que dentre em pouco
   nasce um novo dia,
   e eu preguiçosamente me absolvo
   dos pecados que trago comigo,
   pois eu sei, ainda existem feridas,
   poemas que precisam sangrar.  

NA TÁBUA DA BEIRADA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

    NALDOVELHO

    Meu poema caminha
    pela beirada da tábua
    sem que eu tenha medo,
    mas nunca permitiria
    que ele caminhasse
    na tábua da beirada;
    vai que ele escorrega
    e revela meus segredos.
    Às vezes ele confunde
    privacidade com intimidade,
    e existem coisas que eu não confesso
    nem pra mim mesmo.
    Por isto o cuidado,
    pois o poema é um inconfidente,
    bisbilhoteiro demais,
    adora expor fragilidades.


sexta-feira, 20 de junho de 2014

A PALAVRA É ÁSPERA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

   NALDOVELHO

   A palavra,
   qualquer palavra,
   é áspera
   ao se concretizar.
   O silêncio não!
   O silêncio é liso,
   frio e impreciso,
   não há como materializar.
   Por isto o poema
   para ser poema,
   tem que ser áspero,
   mesmo aqueles
   que brotam liquefeitos.
   Se não for parido
   sangrado e ardido,
   não vai nos emocionar.




QUIETUDE DA ALMA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

   NALDOVELHO

   No céu da boca a língua se contorce
   e carinhosamente envolve a palavra
   até que ela adormeça.

   Quietude precisa da alma
   que em silêncio se acalma,
   por hora não há mais nada a dizer.



PELAS RUAS DA CIDADE - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

   NALDOVELHO

   Colho pelas ruas da cidade
   vestígios de lua cheia,
   às vezes de quarto minguante,
   raras vezes lua crescente,
   pois toda a vez que ela vai embora,
   leva um tempo para retornar.

   Colho migalhas de sorrisos,
   amores sem juízo,
   teias, enredos estranhos,
   sonoridades dissonantes,
   música que alguém esqueceu,
   ou tem medo de cantar.

   E em meio aos escombros
   encontro sempre delicadezas,
   lágrimas, essências, sutilezas,
   folhas rasgadas de um livro
   que alguém começou a escrever,  
   mas não foi capaz de terminar.

   Colho muitas coisas pelas ruas,
   algumas servem apenas como entulho,
   outras consigo restaurar,
   mas existem sempre aquelas
   que semeiam palavras poemas
   para que eu possa continuar a sonhar.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

VINHO MOSCATEL - POESIA DE LUZ E SOMBRAS

NALDOVELHO

A realidade quando aprisionada no céu das nossas bocas solta um gosto amargo... Pura vingança contra quem escolheu viver só de ilusão. Por isto eu caminho pela vida procurando observar os detalhes, não só os de se ver,  mas também, e principalmente, aqueles de se perceber.

Sei, por exemplo, que depois daquela esquina existe um pote cheio de magia,  que só os que nela acreditam conseguem merecer e que estar apaixonado pela lua quase sempre tem um preço, e eu que não sou bobo nem nada, paguei uma vez, fiquei falido, mas quase morri de prazer.

Sei também o quanto custa curar mordida ardida de sereia... Até hoje guardo cicatrizes que quanto bate a maré cheia latejam e começam a arder, e que lá em casa tem uma torneira que quando fica mal fechada goteja palavras poemas, e beber gota a gota, alivia a dor de uma saudade, ou a nostalgia de crescer. Pois não sei se você sabe que crescer dói mais que mordida de lacraia, só que lá no âmago do nosso ser.

Sei de ouvir falar que arroz não se come com macarrão e que macarrão não combina com feijão. Mas eu não quero nem saber, como tudo junto e misturado, pois vivi uma vida toda comendo errado e ainda ponho em cima um pouco de carne moída e ovo estrelado, tudo isto muito bem regado com uma garrafa de vinho moscatel... Vocês precisam ver!

Sei que de tanto observar as coisas, eu estou ficando sabido, e sempre tomando o cuidado de não deixar nada aprisionado no céu da minha boca, para não permitir o amargo e poder a cada dia ou poema, contar um pouco mais a vocês.   



segunda-feira, 16 de junho de 2014

SOU DE OXUM! - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

   NALDOVELHO

   Parece não menina,
   mas eu sou de Oxum!
   com lágrimas sempre prontas,
   vaidades brotando da pele,
   vontades de me embrenhar pelas matas
   para colher na nascente de um rio,
   águas que sirvam de alimento
   para poesia que trago comigo.

   Parece não menina,
   mas eu sou de Oxum!
   com um fogo a queimar por dentro,
   desejos, carícias, tormentos,
   perfume de flores ribeiras,
   e trago em mim corredeiras
   de um rio que me inunda de sonhos,
   e que um dia vai desembocar no mar.

   Parece não menina,
   mas eu sou de Oxum!
   vontade de dizer eu te amo,
   chega mais perto me abraça,
   carinho, ternura e aconchego,
   águas vivas de um riacho
   que inunda teu colo menina
   poesia que eu trouxe para te dar.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

NUMA EXÓTICA CASA DO SUBÚRBIO - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

   NALDOVELHO

   Numa exótica casa do subúrbio
   uma ninfeta sai pelada do banheiro,
   um passarinho excitado no poleiro
   e uma cena inusitada no jardim:
   rosa trepando com o jasmim.
   De cima do muro um gato observa
   uma coruja arrepiada no escuro,
   um cachorro uivando no portão,
   parece até que viu assombração.

   Dona Elvira trouxe água benta da igreja,
   depois benzeu a porta com aguardente
   e queimou muita arruda e guiné.
   Um vizinho ficou olhando e debochando,
   num acredita numa coisa, nem noutra,
   gosta mesmo é de dizer que é crente,
   mas faz tempo não visita o pastor
   e nas ruas tem amante e engana o povo,
   vende lotes num condomínio lá no céu,
   e ainda mostra a escritura num papel.

   Numa exótica casa do subúrbio
   o tempo passa e a ninfeta continua
   a sair peladinha do banheiro
   e a meninada excitada no poleiro.
   Em cima do muro um gato espiona
   Dona Elvira a maltratar a empregada,
   e no jardim Rosa chora preocupada,
   tá mais de uma semana atrasada,
   e o jasmim acho que se escafedeu.

   Numa exótica casa do subúrbio
   Dona Elvira que não perde uma novela,
   não percebe a ninfeta pela casa,
   peladinha, provocando a garotada.
   E a rosa vai dormir toda amuada,
   mais um dia e continua atrasada,
   não pensou no perigo da trepada,
   não sabia que podia ser assim:
   ficar enxertada de jasmim!     

quarta-feira, 11 de junho de 2014

UMA ÚLTIMA MÚSICA, TALVEZ? - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

   NALDOVELHO

   Quantas vezes eu me matei
   para depois renascer a margem da lei?

   Quantas vezes abri mão do meu amor
   para depois amanhecer
   novamente apaixonado por você?

   Se eu tomar aquele trem,
   em qual estação poderei descer?

   Em qual cidade acordarei criança
   e quanto tempo eu levarei
   para reconstruir o meu ser?

   Se eu sou poeta das coisas que vejo,
   como materializar o que eu almejo?

   Queria poder pintar mais um quadro,
   queria escrever mais poemas,
   queria poder amar mais um pouco,
   quem sabe compor uma valsa?
   poderia ser também um bolero,
   poderia aprender a dançar!

   Queria poder dançar como você,
   uma última música, talvez?

terça-feira, 10 de junho de 2014

GRAVATINHA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

    NALDOVELHO

    Eu conheci um sujeito,
    que o povo chamava de Gravatinha,
    gostava de sonhar com a lua
    e dizia que volta e meia
    comia uma estrela que ele encontrava
    bêbada pelas esquinas
    e que eram suas as coisas que descobria
    quando garimpava pelas ruas.
    Já faz um tempo me mostrou um poema,
    e nele a palavra estupefato,
    que ele jurava ter criado
    numa noite de lua cheia,
    lá pros lados do Preventório,
    num tête-à-tête com uma sereia.
    Sujeito sabido era esse tal de Gravatinha,
    até conversar com poste ele sabia,
    e dos pássaros ele dizia
    conhecer as manhas que escondiam.
    Adorava beber um pinga,
    e não poupava nem as de um despacho,
    dizia que o santo permitia,
    e dava gargalhadas quando avisavam:
    - um dia vai dar merda Gravatinha!
    Quarta-feira passada, eu fiquei consternado,
    disseram que o pobre coitado
    foi acertar as contas com os compadres,
    e tudo por culpa de uma das estrelas
    que o povo fala que ele comeu.
    Comer estrela é complicado!
    Dizem que essa tinha dono,
    um cara de andar macio,
    dono de muitas esquinas,
    que eu nem me atrevo a falar o nome.
    Mas já houve também quem dissesse
    que ele anda recolhido lá no Preventório,
    pois de tanta cachaça de santo que bebeu,
    parece que enlouqueceu!
    Pobre do Gravatinha!
    Comer estrela, beber cachaça de santo...
    Tanto fez, tanto fez,
    que eu acho que ele se fodeu!