domingo, 30 de dezembro de 2018

ODOYÁ


    NALDOVELHO

    Eu vi uma menininha
    caminhava pela praia
    em direção aos rochedos
    e falava com as ondas do mar.
    Dizia ter título de realeza
    e que seu nome era Janaína,
    e que era a filha preferida
    de minha madrinha Iemanjá.

    Tinha olhos de profundezas
    e conversava com a lua,
    assim como nós conversamos
    com as pessoas em todo o lugar.
    E tinha o sorriso mais belo,
    voz de encantamento e carinho,
    em seus braços rosas brancas sem espinhos,
    e semeava amor pelos caminhos,
    como se quisesse nos ensinar.

    Oh menina princesa!
    Carrega para o fundo do mar
    meus medos e minhas tristezas,
    diz para a madrinha que eu sou um poeta,
    irremediavelmente apaixonado,
    e que gosto de colecionar ternuras,
    colares, conchinhas, pedrinhas,
    essências maturadas em sonhos,
    poemas alinhavados em delicadezas
    e assim desfaço as amarguras,
    próprias das noites escuras.

    Oh menina princesa!
    Diz para a sua mãe o meu nome
    e pede para me abençoar.
    Odoyá!

sábado, 29 de dezembro de 2018

PRENÚNCIO DE OUTONO


    NALDOVELHO

    Ontem pela manhã,
    logo após o nascer do dia,
    um vento arruaceiro
    invadiu meu quarto
    e trouxe cheiro de mato,
    alvoroço de pássaros bisbilhoteiros,
    que a todo custo tentavam
    trazer notícias dos longes.
    Algazarra danada,
    pois cada um queria ser o primeiro
    a me passar as novidades:
    dizer que o amor foi mais forte
    e que apesar da distância,
    sobreviveu em nós o encanto.

    Ontem pela manhã,
    logo após o alvorecer,
    a saudade tomou conta do meu canto
    e trouxe cheiro de alfazema,
    o som de um piano
    visceralmente doído, 
    um poema orvalhado e sentido,
    lágrimas no canto dos olhos,
    e uma vontade de fazer um escândalo,
    abrir a janela para o mundo e dizer:
    ainda te amo! 

    Ontem pela manhã,
    um café quente e encorpado,
    a vontade de fumar um cigarro...
    Lá fora, chuva fina, vento frio,
    prenúncio de outono;
    aqui dentro, sobrevive o espanto,
    e um passarinho arruaceiro
    a sussurrar em meu ouvido:
    ainda é tempo, hora de recomeçar,
    pois em algum lugar desta estrada
    nós vamos nos reencontrar.


segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

HÁ UM TEMPO


    NALDOVELHO

    Há um tempo certo
    para o cultivo de lágrimas,
    só que por serem de natureza
    e tempo de semeio diferentes,
    brotam cada qual
    no seu tempo próprio de floração.  

    Há um tempo certo
    para o amadurecimento
    da dor de cada ferida,
    até que assim de repente,
    num simples gesto
    de delicadeza ou beleza,
    a cicatriz possa,
    em nós, prevalecer.

    Há um tempo certo
    para o crescimento do ser...
    Cada um tem o seu,
    pois só depois de se aprender
    sobre o silêncio e a solidão,
    poderá ele colher compreensão.

    Há um tempo certo
    para se sobreviver a morte,
    pois só depois deste tempo
    e sabedor dos caminhos
    poderá o ser viajar em sua imensidão.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

O ÚLTIMO FRUTO


NALDOVELHO



Numa região serrana do sul do Brasil, dia claro de março, lá pros idos de 1954, um pequeno lugarejo amanheceu em polvorosa por conta do nascimento do filho da menina Do Rosário. Triste mistério que desde o início da gravidez da moça, nem os pais, nem o pároco ou mesmo o encarregado do policiamento do lugar conseguiram elucidar.

Tudo começou numa tarde friorenta de junho quando Do Rosário, distraída nos seus sonhos de menina moça, ao passear pelas áreas de cultivo, perdeu a noção do tempo, viu o anoitecer envolvê-la, e assim o foi de uma forma tão intensa, a ponto de embaralhar seus caminhos, impedindo-a de retornar ao lar. Do Rosário, depois de muito caminhar, cansada e com medo de prosseguir no escuro, resolveu se refugiar aos pés de uma velha e frondosa macieira com a intenção de descansar, para assim que seus olhos estivessem acostumados ao breu, tentar retornar para sua casa. Mas o cansaço foi mais forte e ali mesmo ela adormeceu.

Seu Domiciano e Dona Idalina, pais da menina, aflitos com o sumiço da mocinha, preocupados com os perigos da noite e com frio característico da região, juntaram forças com alguns vizinhos mais próximos e saíram a sua procura. Andaram a noite toda, pois eram muitos os caminhos e os pomares carregados, quase prontos para a colheita, dificultavam ainda mais a tarefa, pois não deixavam a claridade da lua e das estrelas passar. Foi então que quase ao amanhecer, um grito de dor chamou-lhes a atenção e lhes deu a pista precisa para a trajetória a ser tomada naquela empreitada.

E assim foi: pouco tempo depois lograram êxito e a encontraram abraçada a uma velha e frondosa macieira, já estéril pelo tempo, que ali estava ainda por pura homenagem pelo muito que ela havia produzido em suas colheitas. O dono do cultivo sempre dizia que ela havia sido a primeira e ninguém deveria tocar nela.

Só que a cena era, ao mesmo tempo, motivo de alívio e tristeza, pois a menina estava com sua roupa rasgada e havia em sua saia uma marca enorme de sangue à altura do baixo ventre e tudo indicava que ela havia sido molestada.

Do Rosário foi imediatamente levada ao médico do lugarejo, confirmando-se a suspeita: a menina havia passado por uma experiência das mais traumáticas, sendo constatada também uma febre muita alta, provavelmente agravada pelo frio da noite.

A menina ficou desacordada por mais de dez dias, até que a febre cedeu e ela enfim despertou.  Acordou, mas nada disse, olhos fixos na janela, num misto de medo e ansiedade e por muito custo começou lentamente a se alimentar, aconchegada ao carinho e tristeza de sua preocupada mãe.

Daquele dia em diante, Do Rosário, se recuperou prontamente, mas manteve-se calada sobre o acontecido, nada dizia a respeito, era como se em sua mente aquela noite tivesse sido apagada, apesar da insistente bisbilhotice das pessoas, principalmente do pároco e da autoridade policial.

Com o passar do tempo, uma sombra de barriga somada aos enjoos característicos denunciaram a avassaladora verdade: a gravidez da menina, o que só fez aumentar entre o povo daquele lugar os comentários.

- Pobre menina, além de ter sofrido tamanha violência, a vergonha da gravidez e a sua vida destruída...

- Menina ainda, quem vai querer casar com ela?

Do Rosário, durante todo o tempo da gravidez, abatida pela situação, agia como se nada tivesse acontecido, e por mais que todos tentassem descobrir algo, obtinham a mesma resposta de sempre.

- Não sei o que me aconteceu, não me lembro de nada, não sei o que me aconteceu.

E não foi uma gravidez fácil: constantes enjoos, cólicas violentas, vez por outra uma febre muito alta que apesar dos cuidados médicos não encontrava explicação, que surgia assim do nada e horas depois passava, mas que a consumia. E a menina a cada dia mais enfraquecida, a ponto de não querer sair de casa, prostrada em sua cama, mal se alimentava, parecia até uma maldição, coisa difícil de ver.

Sua mãe, já desesperançada com os acontecimentos, lá pelos cinco meses de gravidez da menina, resolveu então, contrariando a vontade do médico e do pároco, recorrer a uma velha rezadeira de nome Das Dores, parteira e feiticeira famosa na região.

Ao chegar à casa da menina, a velha foi logo dizendo:

- Todos para fora, me deixem aqui sozinha com a menina, que eu tenho muito trabalho a fazer.

Foi um dia e uma noite de rezas, chás e unguentos, e só ao amanhecer, a velha saiu da casa abatida como se tivesse levado uma surra e foi logo dizendo:

- A menina agora vai ficar bem, nada mais de dores, febres e enjoos.

Dona Idalina, aflita com tudo aquilo, foi logo perguntando:

- Ela e a criança vão ficar bem, Das Dores? A menina já sofreu muito e eu estou muito preocupada.

Disse então a velha:

- A menina Do Rosário vai ficar bem, eu garanto! Só não garanto a criança, nunca vi coisa igual, mas para Deus nada é impossível, vamos confiar! 

E se aproximando da Dona Idalina, cochichou ao seu ouvido:

- O que aconteceu com a sua filha tem a ver com a velha macieira onde ela foi encontrada, fico toda arrepiada só de pensar, é melhor a senhora não dizer nada, não dá para confiar no povo desse lugar, principalmente no médico e no pároco. Vamos entregar nas mãos de Deus e rezar.

Dona Idalina não entendeu direito o que a velha quis dizer com aquelas palavras, mas por via das dúvidas resolveu não comentar nada com medo do que o povo pudesse pensar.

E assim o tempo passou, até que finalmente era chegada a hora e as pessoas apreensivas e até penalizadas com tudo aquilo, comentavam:


- Que Deus lhe dê uma boa hora, e que ela possa voltar a ter a mesma alegria de antes, apesar da criança que vai chegar.

Como já era de se esperar, naquele dia, nem o pároco, nem o médico deram as caras na casa de Dona Idalina, pois não haviam gostado nem um pouco da interferência da rezadeira a quem volta e meia se referiam como uma feiticeira, alguém que havia feito um pacto com o diabo.

Seu Domiciano mais que depressa, saiu em busca de Das Dores, que ao chegar foi logo mandando que todos se retirassem e que só ficasse na casa a mãe da menina, e mais que depressa começou o trabalho para o qual havia sido chamada.

Foram muitas horas de aflição e dor, já que o parto estava encruado. Só ao amanhecer do outro dia a criança nasceu e para o desespero de Dona Idalina, que aos gritos demonstrava todo o seu desespero e horror, uma massa disforme, um verdadeiro monstro, pele grossa como se ali houvesse uma casca, coisa áspera e cheia de pequenos ramos que mais pareciam finas raízes... Não tinha olhos de ver, nem boca de chorar e dos ouvidos, pelo menos pareciam, escorria uma seiva esverdeada que exalava um forte cheiro de maçã.
              
Não durou nada a pobre criatura, praticamente um natimorto, pois tão logo a luz do sol banhou o seu corpo, estremeceu e morreu. Naquela altura, na casa havia um enxame de pessoas atraídas pelos gritos de Dona Idalina, curiosas para ver o motivo de tanto desespero.

A velha feiticeira, muito abatida, tratou logo de enrolá-lo numa grossa coberta, tirando-o da visão daquela gente e foi tratar da menina que, enfraquecida, com todo aquele esforço, corria evidente risco de morte, já que o parto havia lhe sugado toda a energia e luz.

Com muita firmeza, a velha feiticeira expulsou todos os curiosos do interior da casa e tratou da menina com toda a habilidade que possuía. Entoou rezas, e com suas ervas e feitiços, preparou um caldo grosso, uma espécie de sopa, que logo resgatou a menina dos braços da morte, salvando-a do pior.

O pároco e o médico da cidade foram logo chamados para as necessárias providências e da extrema unção. Assim que chegou, o médico foi logo examinar Do Rosário e vendo que apesar de muito debilitada ela não corria mais nenhum risco, tratou de prescrever alguns cuidados e remédios e foi examinar o pequeno ser.

Ao desenrolá-lo da coberta, não pode evitar uma expressão de nojo e espanto, nunca havia visto uma criatura como aquela. Mais que depressa, enrolou-o novamente e tratou de emitir o atestado de óbito. O pároco que a tudo acompanhava de perto, assustado com o que havia visto, só sabia segurar seu terço e rezar repetidamente a Ave Maria e o Pai Nosso, e de uma forma nervosa, com uma voz estridente, logo afirmando em tom de recusa, que por estar morto ele não poderia dar extrema unção àquela criatura, que em seu fanatismo religioso ele chamou de filho do demônio e aos gritos disse para todo mundo escutar que as portas do cemitério do lugarejo, estariam fechadas para aquela aberração.

Ainda naquele dia, Seu Domiciano, homem bronco mais de boa índole, tratou de preparar uma pequena caixa de madeira de modo a abrigar o corpo do pequeno ser, que apesar de toda a repulsa que a imagem do seu corpo viesse a lhe causar, era seu neto e merecia o enterro o mais digno que pudesse lhe dar.  Improvisou uma pequena cruz que cuidadosamente pregou na tampa da caixa e entalhou nela a seguinte frase: Deus lhe acolha meu filho, e partiu para o cemitério do lugarejo com a firme intenção de enterrá-lo.

Só que o pároco, assim que viu o bom homem a transportar aquele improvisado caixão, como se a adivinhar seu intento, se pôs a correr em direção ao cemitério junto com o sacristão, na firme intenção de impedi-lo, pois como se não bastasse ser aquele o corpo de uma criatura bizarra, na sua visão fruto de um ato do diabo; havia também o fato de que segundo a sua crença, como aquele ser não havia sido batizado, campo santo algum poderia abrigar. 

Juntaram-se a eles, boa parte da população do lugarejo e mais a autoridade policial, que incisivamente impediram o intento do velho Domiciano, ameaçando-o inclusive de prisão.

Sem ter como melhor resolver a demanda, Seu Domiciano, resolveu acatar a sugestão do médico do lugarejo que tentava mediar a situação, e partiu para fazer o enterro atrás do cemitério, fora do campo santo, numa pequena colina que existia por lá.

Anoitecia quando aquela estranha criatura baixou à improvisada sepultura, sob os olhares de reprovação daquele povo. No local, o velho, em cima da cova, cravou com pedras uma cruz e rezou fervorosamente para que o seu neto fosse acolhido pelo Pai e finalmente encontrasse a paz.

Feito isso, o velho se retirou em silêncio, com dolorosas lágrimas da revolta que lhe afligia o coração, e foi para a casa cuidar de sua mulher e filha, mas nesse momento, já com a intenção de que assim que a menina Do Rosário estivesse restabelecida, juntarem suas coisas mais preciosas para saírem daquele lugar.

Passado alguns dias, com a menina demonstrando força e vitalidade, Seu Domiciano procurou o dono do cultivo para quem vendeu rapidamente a sua pequenina gleba de terra. Não foi um valor justo, mas o suficiente para recomeçarem noutro lugar, onde ninguém conhecesse a triste história pela qual acabavam de passar.

Na véspera da partida, a menina Do Rosário pediu ao pai que a levasse ao pequeno túmulo improvisado, pois ela queria fazer uma oração pela alma daquele ser e assim terminar aquela triste história.

Ao chegar ao lugarejo, foram direto até a pequena colina onde o velho havia enterrado a criança. Lá chegando, Do Rosário caiu num pranto convulsivo e debruçada sobre o pequeno túmulo ficou por mais de uma hora, como se exorcizando o restante da sua dor.      

Rezou com fé e devoção, pedindo ao Pai que amparasse a todos e que perdoasse as pessoas daquele lugar, e principalmente que acolhesse a alma daquele ser inocente.

Mas ao se levantar para ir embora, sentiu no ar um forte cheiro de maçã e percebeu assim um tanto assustada, que aos pés da cruz de pedras cravada no local pelo seu pai, apesar do pouco tempo passado, uma pequena macieira despontava. Recuperada do susto, não pode evitar um sorriso, pois aquele sinal havia nela a certeza da imensa misericórdia do Pai e que Ele havia acolhido o seu filhinho.

O lugarejo até o dia de hoje é grande produtor de maçãs e a maior parte das pessoas que testemunharam ou participaram da história já foram ao encontro do Criador. Mas os fatos que acabo de descrever permanecem entre as pessoas daquele lugar, até porque aquela imensa macieira atrás do cemitério ainda está por lá. Ironicamente, na época da colheita, é a mais frondosa, só que ninguém se atreve, têm medo do que lhes possa acontecer.

Os pais da menina Do Rosário, também já não estão mais entre nós, e ela se casou com um colono da região aonde foram morar, mas não teve mais filhos, e vive até hoje, com quase noventa anos de idade, uma vida humilde e calma, mas guarda a triste lembrança daqueles dias e se põe a orar toda a vez que lembra.

Outra história que sobrevive até hoje entre as pessoas do lugar, fala sobre a velha feiticeira, que segundo reza a lenda, caminha até hoje pelas trilhas e lugarejos da região na prática da caridade, tudo por um prato de comida e um pernoite. O povo diz que ela é imortal. Quem sabe um anjo?

O novo pároco diz que tudo não passa de crendice do povo e que se há alguma verdade no que acabei de lhes contar, bem provavelmente deve ser coisa do demônio e nada melhor do que uma boa oração com os joelhos no chão numa súplica ao bom Deus para que Ele nos dê o seu perdão.                      

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

O VERDADEIRO HERDEIRO


L011-1053
O VERDADEIRO HERDEIRO
NALDOVELHO


Rua arborizada, segunda casa a direita de quem sobe, bairro do Fonseca, zona norte de Niterói. Por lá um velho alfaiate, o nome dele era Seu Germano. Calças, camisas e até meus ternos; caimento impecável, apuro na escolha dos tecidos, coisas que nunca mais encontrei em outro profissional do gênero. E ele era também um bom papo, homem vivido, de enorme sabedoria e sensibilidade, bom contador de histórias, um aristocrata por toda a nobreza de que era capaz, sempre um prazer ali estar e escutar quando ele dizia que através de suas mãos ele conseguiria ascender aos céus.

Era casado, segundo ele, há quase cinquenta anos com Dona Júlia, confeiteira de mão cheia, mulher de muita espiritualidade e senso de humor. Quantas tardes de sábado passei com eles e quanto aprendizado entre uma medida e outra, e sempre, e sempre acompanhadas de um café coado com canela, biscoitinhos recheados, e no final, um delicioso licor de amoras. Até hoje sinto nos lábios o calor daquele néctar, coisa difícil de esquecer.

Certa feita ele me contou sobre um tempo de puro encantamento, década de cinquenta, quando conheceu Dona Júlia que fazia suas compras no armazém de Seu Abílio, e que de imediato por ela, ele se apaixonou. Disse-me, então, que foi amor à primeira vista, e que a princípio ela nem o olhou, interessada que estava na escolha de suas frutas, pois na época já era precocemente conceituada por conta de suas tortas e bolos, e principalmente pelos licores que fazia. Mas que o que ele sentira fora tão forte que cuidadosamente ele se aproximou e pouco a pouco a conquistou.

Existia uma particularidade naquele casal que muito me atraia: uma espécie de harmonia alinhavada pela ternura que só dois espíritos de elevada estirpe conseguiriam desenvolver. Nossas conversas inevitavelmente recaiam sobre o espiritismo e a filosofia que envolvia aquela crença, o quanto de poder ali existia, a ponto de fazer-nos melhores, mais cônscios de nossas obrigações e mais fraternos com os nossos irmãos.

Dona Julia, era o que na crença denominamos de médium, e sua especialidade era a da psicofonia. Dizia-nos trabalhar com uma freira cujo nome em sua última jornada teria sido Irmã Anna de Lourdes. Quantas mensagens de elevado teor e sabedoria através dessas manifestações eu tive o privilégio de presenciar. Seu Germano, sempre atento à sua amada mulher, fazia o seu assessoramento com muito respeito e carinho, e sempre e sempre com lágrimas nos olhos, tal a emoção que sentia quando isso acontecia.

E em minha lembrança, um precioso detalhe sempre despertou muita curiosidade e atenção: quase sempre as mensagens nos eram transmitidas ao som de música clássica. Mozart era o preferido, Strauss e Chopin, também tinham seus lugares de destaque. Mas havia uma exceção:  em  determinadas ocasiões, Billie Holiday, e quando isso acontecia não era as Irmã Anna de Lourdes que ela recebia. Certa feita, perguntei-lhe, constrangido pelo meu próprio estranhamento, o porquê, de ao fundo daquelas mensagens tão edificantes, o som daqueles blues viscerais e ardidos, coisa meio maldita e que nos arremetia a um sofrimento tamanho por uma vida desregrada e autodestrutiva, como havia sido a daquela mulher?

Ela sorria e me respondia:

- meu filho, o amargo faz parte das nossas vidas, assim como o mel que encontras nos meus licores, e se prestares bem atenção, sentirás que lá no fundo do teu paladar irás encontrar sempre uma pitada de amargor. Faz parte, e é parte importante. Além do quê, é preciso dar significância ao seu sofrimento, pois só assim ela conseguirá resgatar seus débitos.

Seu Juvenal sorria, e dizia que a Dona Júlia, além dos clássicos, era amante de um bom jazz e dos blues, principalmente os ardidos, e que ele também o era, pois havia aprendido com o convívio, a perceber a emoção que aquelas músicas passavam e o aprendizado que a descoberta de quê, muitas vezes, um erro abre a possibilidade de um novo caminho e que ao final dele, mais sabedoria iriamos encontrar.

Deus meu, aquelas palavras só aumentaram o meu estranhamento. Eu sentia como se ali houvesse uma ode ao erro, uma exaltação do pecado, e mais confuso eu ficava.

E ela me dizia:

- meu filho, para de julgar! Cada pessoa carrega em suas malas, erros e acertos, e esses fazem parte do crescimento necessário para que se possa atingir a luz. Sem o conflito constante entre o bem e o mal, entre a virtude e o pecado, entre o coração e a razão, entre a felicidade e a dor, ninguém alcançará a compreensão necessária para se transformar num obreiro do Pai, e aí está o verdadeiro objetivo da reencarnação. O nosso acesso se faz entre os ais. Faz parte da jornada, naufragar e soçobrar em frangalhos numa praia deserta qualquer, tropeçar e se ver ferido pelas pedras e cascalhos, sentir a sede e a fome para poder saber do valor de um riacho de águas claras ou de um pequeno e humilde pedaço de pão. Só quem conhece a solidão, saberá abraçar fraternalmente um irmão, só quem sobreviveu à dor do erro e do pecado, saberá ir aos lugares mais trevosos para resgatar um espírito em sua aflição. É preciso ao ser, a experimentação, pois é ela que aliada ao refletido conhecimento, nos trará a sabedoria.

E o Seu Germano complementava:

- por isso Billie Holiday e seus blues, por isso nesta casa você encontrará sempre tantos discos de jazz, e se você for ver bem direitinho, muitos boleros, tangos e fados.  Sem  contar as  sofridas páginas de Chopin e Strauss,


valsas maravilhosas encharcadas de amor e dor. Vivenciar todas essas coisas faz parte do crescimento do homem.

E Dona Júlia mais que depressa dizia:

- agora vamos tomar um bom café com os meus biscoitinhos e depois um licor, pois esse papo está bom, mas já foi muito longe.

E a sorrir se apressava em colocar a mesa.

O certo é que foi naquela casa e através dos ensinamentos daquele casal, que eu virei um amante da boa música, principalmente dos blues e do cool jazz. E vejam: eu não tenho nenhuma dúvida que foi a partir daquela fonte de amor, conhecimento e ternura que eu abracei o espiritismo; não como religião, já que eu me considero um homem sem fé, mas pelo conteúdo filosófico dos ensinamentos essenciais para o crescimento do ser. 

Dona Júlia fez sua passagem já tem bem uns dez anos. Seu Germano partiu fisicamente de nós, cinco anos depois e sua casa com todos os móveis e utensílios, hoje, se encontram abandonados, sendo devorados pelo tempo. Dizem que por desentendimento dos herdeiros, pois apesar de não terem tido filhos, sempre existirão aqueles, os colaterais, que passaram toda uma vida sem dar valor ao que de bom por ali eles podiam colher, mas que na hora da herança não se sentem constrangidos pela ilusão dos bens materiais e brigam, até não poder mais.

Nessa história, a bem da verdade, eu espiritualmente me vejo como o verdadeiro herdeiro, por todo ensinamento obtido com aquele casal, tendo inclusive, um pouco antes da morte do Seu Germano, recebido de presente seus preciosos discos de vinil, que guardo com o maior carinho, e os cadernos de receitas da Dona Júlia, que quem sabe num momento apropriado, destinando a renda para a caridade, eu possa ter o prazer de publicar.

De resto: muita saudade e a sensação de que a vida ficou um pouco mais sem graça, pois é sempre duro para os que ficam, a consciência da perda dos seus referenciais.

Estejam onde estiver, sei que eles estão juntos. Ele com as suas costuras, ela com as suas tortas e licores, e eu não tenho dúvidas que através de suas mãos mágicas e da nobreza de suas vidas, os dois ascenderam aos céus.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

BORDADO MÁGICO


    NALDOVELHO

    De suas mãos
    brotava um bordado mágico
    em tessituras delicadas
    de amor e esperança,
    poeira de estrela
    colhida em lua crescente.
    E a menina se ria toda vez
    que duvidavam de sua magia,
    e dizia com um olhar travesso:
    poesia, poesia...

    Assim cresceu a menina,
    íntima de muitas feitiçarias,
    com o poder de curar os aflitos,
    de desfazer a dor
    que dilacera por dentro,
    de transformar tempestade
    em chuva fininha, garoa,
    e ventania numa simples aragem.
    E uma vez mais quando duvidavam,
    ela com um olhar travesso, dizia:
    poesia, poesia...

    Já faz algum tempo
    a menina virou mulher
    e hoje enxertada de amor
    sorri toda a vez que nasce um dia,
    colhe suas ervas ao entardecer,
    e ao anoitecer tece sem pressa,
    mandalas, bordados, poesia,
    cumplicidade urdida com o tempo...
    e com um sorriso maroto
    acaricia o seu ventre e diz:
    vai ser poeta quando crescer.

    Magia, magia, magia...




terça-feira, 11 de setembro de 2018

UM BRINDE A VIDA


    NALDOVELHO

    Toda a vez que amanhece
    eu brindo aos meus recomeços,
    brindo a possibilidade do desafio,
    ao inevitável arrepio,
    e pelas ruas da minha cidade
    eu colho pétalas, nostalgia, saudades,
    pois assim vive o poeta
    que teima em explorar sua imensidão.

    Toda a vez que amanhece
    eu agradeço a Deus com uma prece,
    mãos espalmadas a acariciar o tempo,
    asas abertas ao sabor do vento
    e revejo planos, compreendo desenganos,
    pois a possibilidade de realizar meus sonhos
    é chama acesa que aquece meu coração.

    Toda a vez que entardece
    eu brindo a possibilidade do amanhã,
    ainda que minhas pernas estejam fracas,
    meus olhos lacrimejem de cansaço
    e minha voz viva aprisionada na garganta,
    restaram as palavras que eu amo,
    e o dom de fazê-las fluir de minhas mãos.

    Toda a vez que anoitece
    eu percebo a suavidade que emerge
    da melodia que abençoa meus passos,
    das águas do mar que acariciam o rochedo,
    da lua que lá do céu conspira em segredo
    para que eu possa me deliciar com mais uma dança,
    pois mais do que nunca, viver é uma paixão.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

LÁGRIMA FUGITIVA


    NALDOVELHO

    Uma lágrima fugitiva
    escapuliu nem sei como
    e numa folha de papel
    um poema absorveu.

    Especial este poema,
    com cheiro e gosto de saudade,
    nostalgia que vez por outra me invade.

    Especial esta lágrima
    que um dia teve nome e endereço,
    mas já faz tanto tempo,
    tanto, que o poeta mente
    e diz que esqueceu.

    E assim foi, uma lágrima fugitiva
    que num cantinho da folha de papel
    um poema de amor absorveu.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

O POEMA É OUTRA COISA


    NALDOVELHO


    Poesia é a possibilidade do sonho,
    é manhã ensolarada de outono,
    janelas e portas abertas
    e a passarada toda em festa;
    mas às vezes é nublada e fria,
    e ainda assim um novo dia,
    com café quente e encorpado,
    vontade de fumar um cigarro,
    inventar caminhos de ternura
    onde antes só existia a clausura.

    Poesia é saudade, gastura, nostalgia,
    candeeiro aceso em noite sombria,
    necessidade de viajar mundo afora,
    é pacto feito entre o ontem e o agora,
    licença para se cometer sacrilégio,
    remédio que cura a amargura e o tédio,
    conhaque envelhecido, acalanto,
    magia que dissolve o meu pranto,
    desaguar de águas claras, cachoeira,
    que se faz em rio de romper fronteiras...

    O poema não!
    O poema é outra coisa:
    é mostrar minhas asas de viajar por dentro,
    é a coragem de materializar sentimentos,
    é desconstruir o silêncio a que me obrigo,
    é a necessidade de me comunicar contigo,
    é a ponte que me permite o abraço
    e o carinho a construir novos laços,
    é minha bênção, minha verdade, minha oração,
    é o jeito que eu tenho de acabar com a solidão.




quinta-feira, 9 de agosto de 2018

PRISIONEIRO DA MINHA SOLIDÃO


    NALDOVELHO

    Você nos disse que um dia
    estaríamos crescidos
    e que não mais escutaríamos
    vozes em nossos ouvidos,
    que não existiriam
    feridas em carne viva,
    tão pouco inquietudes
    a perturbar nossas vidas;
    mas o tempo passou,
    e nós ainda estamos perdidos,
    sem saber se o rumo escolhido
    vai nos levar a algum lugar,
    ou se nossas raízes irão frutificar.

    Você nos disse que um dia
    o amor iria nos preencher,
    que ele abriria portas
    e que se caminhássemos de mãos dadas
    seria difícil alguém nos separar,
    e por isso todas as promessas,
    ternuras, loucuras, coisas sagradas,
    próprias de quem ousou sonhar;
    mas o tempo passou
    e quando eu olho ao redor
    você já não mais está,
    e a nossa música continua a tocar,
    e a nostalgia insiste em me assombrar.

    Você me disse que um dia
    eu aprenderia a perceber,
    e que quando isto acontecesse
    a dor que eu sinto não iria mais doer;
    mas o tempo passou
    e eu só percebo vestígios
    da minha imensidão,
    e das paredes que me cercam,
    palavras num idioma estranho;
    algumas eu já consigo compreender,
    a maioria não!
    Acho que por isto que eu ainda sou
    prisioneiro da minha solidão.

 

quinta-feira, 26 de julho de 2018

O TEMPO QUE EXISTE EM MIM


    NALDOVELHO


    O tempo que existe em mim
    pulsa de um jeito diferente
    do tempo de toda essa gente.

    Às vezes arrastado como um bolero,
    em outras, ardido como um tango,
    tem dias que ele pulsa maldito
    como se fora um blues,
    ainda bem que quase sempre
    ele tem leveza de uma valsa.

    No tempo que eu tenho
    lágrimas escorrem quando eu me emociono,
    o sorriso tem a delicadeza de um carinho
    e o carinho é joia rara a ser ofertada    
    toda a vez que o amor supera a paixão.

    O tempo que existe em mim
    é poema que eu não consigo escrever,
    pois toda a vez que eu tento
    ele pulsa patético como quem
   ainda tem muito que aprender.