segunda-feira, 31 de outubro de 2016

LOUCURA DE POETA

NALDOVELHO


Certa feita, já faz um bom tempo, com esta mania de colecionador que tenho, cismei em ter na prateleira da minha estante um bom punhado de entardeceres, desses de sol mergulhando nas águas, diversos tons de dourado, banhados de nostalgia, coisa para nunca mais se esquecer.

E assim saia eu todos os dias a colher tais preciosidades, e junto, acabava por trazer tantas outras, agregadas que estavam: brisa macia que varria a cidade, beira do mar a inspirar poesia, praia deserta, solidão e desassossego, e lá pras bandas do meu desterro, aqueles rochedos que insistiam em sobreviver à fúria do mar. E aquele era o lugar ideal para se colher pedrinhas, conchinhas e os mais lindos poemas que eu já consegui escrever, e é claro: os mais lindos entardeceres.

Só que com o tempo, prateleiras eram poucas em minha estante, e os entardeceres eram tantos e tão belos, que derramados pelo quarto ocupavam todo o espaço e eu acabava entardecendo também.

Foi então que lembrei Vó Miudinha e suas sapiências, e já me sentido assim meio acabado, orei pedindo ajuda e orientação. Vó Miudinha velha sabida que era, lá de longe respondeu: para curar a nostalgia que brota da tarde, eu precisava colher madrugadas; muitas... E que fossem todas encharcadas de orvalho, pois só assim eu conseguiria amanhecer.   

E assim ficou o meu quarto: depositário de entardeceres, madrugadas e amanheceres, tudo junto e misturado. Haja poemas para conseguir sobreviver. E Vó Miudinha já havia me alertado sobre isto: poeta é assim mesmo meu neto, se não tomar cuidado pode até enlouquecer.

A PELE DA NOITE

    NALDOVELHO

    A pele que envolve a noite
    normalmente é estrelada,
    mas às vezes é negra como o breu.
    Nunca vi noite pálida,
    mas já vi noite esquálida,
    esmirradinha, sem graça.

    A pele que envolve a noite é fina,
    papel de seda esticado,
    quando se rompe no horizonte
    trespassa-lhe a luz;
    lua invasora que derrama seu prateado,
    traz magia, seduz.

    A pele que envolve a noite às vezes é morada
    de lágrimas no canto dos olhos...
    Quando se libertam, já é madrugada,
    e aí é tarde, e você não conseguiu dormir.
    Se olhar bem, toda a noite é nostálgica,
    mesmo as salpicadas de luz.

    A pele que envolve a noite é poema
    do entardecer ao nascer do dia,
    seria até mais fácil eu rimar com poesia,
    mas esta é muito maior,
    cabe em todas as noites, em todos os dias,
    é muito mais do que se possa escrever.


quinta-feira, 27 de outubro de 2016

EU TE DIREI

    NALDOVELHO

    E eu te direi das sementes
    que germinam em minha alma,
    das ilusões que trago comigo,
    das emoções que macero em meu umbigo,
    das imagens que eu cultivo em segredo,
    das orações que vencem meus medos,
    do ser que eu construo pouco a pouco,
    das cicatrizes espalhadas pelo corpo,
    dos escombros, dos restos de demolição.

    E eu te direi dos sonhos que povoam meus dias,
    da estranha mania de escrever poesias,
    das músicas que aquecem o meu coração,
    da necessidade de cultivar a solidão,
    dos enredos desfeitos, dos caminhos estreitos,
    da necessidade de sentir na pele o arrepio,
    de ter em meus olhos uma nascente de rio,
    das lágrimas que choro no chuveiro...


    Ainda que estejas longe, eu te direi!

domingo, 23 de outubro de 2016

VIDA E MORTE

    NALDOVELHO

    Vida e morte caminham
    de mãos dadas por esta estrada
    e nada há de estranho nesta relação,
    cada minuto que passa,
    cada batida do meu coração,
    é uma celebração desta união.

    Vida e morte gostam
    de dançar de rosto coladinho, 
    carícias viscerais e indecentes
    não raro trocam confidências,
    e se devoram num bailado insano,
    mistura de dor e prazer.

    Vida e morte caminham
    de mãos dadas por esta estrada,
    e tanto é assim, que eu não sei
    se cada dia somado
    é no meu tempo menos uma fração,
    ou mais um trecho na minha imensidão.

    Poemas de luz e sombras.




segunda-feira, 17 de outubro de 2016

O POEMA CHEGOU AO FIM

    NALDOVELHO

    Tempo de viajar para o lado de dentro,
    exercer novas possibilidades,
    mexer em emoções pouco exploradas,
    levar luz a recantos sombrios,
    aceitar novos desafios.

    Tempo de viver o amor que eu sinto
    por alguém que existe dentro de mim,
    pois é chegado o meu momento
    e eu vos digo sem dor ou lamento,
    que o poema chegou ao fim.


    Tempo de alicerçar novas construções.

sábado, 15 de outubro de 2016

FIOS DO TEMPO

    NALDOVELHO

    O tempo tece seus fios,
    alinhava enredos,
    descortina segredos,
    e eu aqui já faz um tempo,
    buscando superar meus medos,
    tentando encontrar no outro
    a solução para a solidão
    que me devora.

    O tempo estende seus fios
    pelas trilhas do meu desassossego,
    artérias e veias congestionadas,
    e eu aqui querendo mais um tempo.
    Um que seja suficiente
    para pacificar conflitos,
    não os dos outros,
    mas aqueles que me devoram.
    
    Fiz da palavra um caminho
    de autoconhecimento,
    suavizar minha alma,
    purificar pensamentos,
    dando-lhes a leveza de uma pluma...
    E eu aqui querendo mais um tempo,
    um que me baste,
    preciso me resolver por dentro.



domingo, 2 de outubro de 2016

FILHOS DE DEUS

    NALDOVELHO

    Ao amanhecer naquela cidade
    um menino na mais tenra idade
    caminhava impunemente pelas ruas
    e ele nos trazia braçadas de flores,
    algumas ainda com espinhos,
    outras, de pura felicidade.

    Mas as pessoas que ali viviam,
    por mais olhos que tivessem,
    perceber não conseguiam,
    se afastavam em silêncio,
    pois com medo da verdade
    calavam seus corações.

    Mas com o seu jeito franco
    e um olhar terno e penetrante
    ele insistia em conversar com elas
    como se as conhecesse por dentro,
    e dizia que ele também era filho de Deus,
    só que diferente.

    E assim agia aquele menino
    do amanhecer ao anoitecer
    na esperança de que um dia
    corações e mentes daquela cidade
    pudessem enfim compreender.
    Palavras da salvação!