quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A POESIA NÃO PRECISA DE MIM

    NALDOVELHO

    A poesia não precisa de mim,
    a palavra que brota assombrada, sim!
    E ela escorre adocicada
    na mistura de veneno e orvalho
    com o medo de morrer num naufrágio,
    da necessidade de seguir em viagem
    com a esperança que levo na bagagem,
    do sangue que se arrasta em minhas veias
    com os feitiços conjurados na lua cheia,
    da solidão que me envolve e alicia
    com a mania de acreditar em magia.
    
    A poesia não precisa de mim!
    Eu é que preciso dela até o fim.

domingo, 12 de novembro de 2017

VERSOS DE AMOR

    NALDOVELHO

    Mergulhe fundo no coração de sua casa,
    diga a ele para abrir portas e janelas,
    cômodos precisam respirar.
    Expulse de lá a umidade e o mofo,
    tire a poeira que insiste
    em tomar conta do lugar,
    depois, rabisque nas paredes
    versos a quem te trouxe dor e prazer.
    Mas não revele o nome do pecado,
    solidão, nostalgia, saudade,
    coisas que só a você interessa saber.
    Se depois de escritos os poemas parecerem patéticos,
    não se importe, versos de amor assim costumam ser.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

MEMÓRIAS DAS MINAS GERAIS


MEMÓRIAS DAS MINAS GERAIS
RONALDO BUONINCONTRO


Velha casa avarandada de uma chácara localizada num tradicional bairro da pequena São Domingos da Prata, Minas Gerais; nos limites do faz de contas, nas cercanias da BR. 262, estrada que liga Belo Horizonte a Vitória. Por lá sonhos fincavam raízes e alicerçavam na alma coisas que normalmente as pessoas não viam.

Muros de pedras de mão assentadas, como se fizessem parte de uma mandala que ninguém desmanchava, também nem precisava, casa de portas sempre abertas para quem quisesse se achegar. Vastas áreas cultivadas com roseiras, azaleias e samambaias, mangas carnudas, morango, amora, goiaba, lírios e colibris, diversos tipos de bromélias, entre elas o abacaxi, canários da terra e até bem-te-vis.

Um velho banco de imbuia debaixo de um caramanchão pertinho de um córrego, onde a molecada do bairro se fartava sob as bênçãos de Dona Celeste, de primeiro nome Maria, contadeira de estórias que ninguém cria, mas que todos prazerosamente ouviam. 

Tia Celeste, como a meninada chamava, adorava um caso de fantasma, tinha prazer em tecer pequenos enredos assombrados, e a gurizada de olhar esbugalhado não arredava pé; mas que ao final sempre deixavam alguma lição, onde ela dizia que todo o fantasma tinha um assunto pendente, algum embaraço não destrinchado, que enquanto não fosse resolvido não o deixava partir, e que essas pendências normalmente eram fruto de algum mal feito, muitas vezes até da pobre alma que perdida padecia, e padecia, até que pago o seu débito pudesse se libertar.

Dona Celeste tinha uma netinha de nome Anunciação, filha de Maria Eugênia que um dia, engravidou enganada pela paixão e que logo após o parto da menina, caíra no mundo para nunca mais voltar. A menininha tinha de oito para nove anos; ruivinha de olhinhos vivos e azuis, mais parecia um anjo e certamente era a alegria da casa, pois espirituosa como ela só; adorava as histórias da vó, e não se assustava com elas, já que nem ela cria, e caia na risada quando a vó dizia:

- é tudo invencionice minha neta, pra modi eu mostrar para a molecada que o mal feito sempre cobra o seu preço e que eles devem se comportar.

E foi assim que o Antônio conheceu aquele lugar de porteira sempre aberta, com muita fartura e encantamento, tanta que sempre que ele podia passava por lá; ora para tomar um bom café e trocar dedo e meio de prosa e aproveitar os conselhos de Dona Celeste, ora para recolher as frutas e verduras produzidas na chácara para vender pelas ruas da cidade. Dirigia ele, na época, com pouco mais de vinte anos, uma pequena caminhonete, e toda a produção que de lá ele vendia era repartida meio a meio, uma forma de ajudar aquela família tão acolhedora em seu sustento e de também ganhar o seu. Período bom aquele, tão bom que depois de alguns anos, ele conseguiu até dar entrada num caminhão maior, dar voos mais profundos, mais distantes e virar caminhoneiro na rota Belo Horizonte Vitória.

Mas a vida gosta de pregar suas peças... E assim depois de alguns anos, Dona Celeste, mulher honesta e trabalhadeira, que vivia de cuidar do seu canto com muito amor e carinho e a menina Anunciação, a cada dia mais formosa, que de criança com ares angelicais, naquele momento botão de rosa prestes a desabrochar, já com seus quinze para dezesseis anos, e que despertava não só os olhares e os sonhos da molecada, mas também dos homens feitos que porventura passassem por aquele lugar; tinham um drama a vivenciar.

Nesta época, Antônio já estava na estrada e soube por ouvir contar. Anunciação, apesar dos aconselhamentos da Vó, encantada por um rapaz de nome Alceu, acabou por se apaixonar, e dessa paixão nasceu uma linda criança de nome Cecília; só que a partir daí, o Alceu, que tomou estrada com a desculpa de arrumar um emprego e depois vir buscar a Anunciação e a menininha, desapareceu. Dona Celeste que já havia vivido essa mesma história com a sua filha Maria Eugênia, a princípio se desesperou, mas logo o amor falou mais alto e ela se desdobrou e abraçou a netinha e sua filhinha, dando-lhes todo amor e compreensão. Mas de nada adiantou, passado o tempo do resguardo, Anunciação, num misto de vergonha e arrebatamento, e na tola esperança de sua paixão reencontrar, caiu na estrada, de carona em carona, para nunca mais retornar.  

E hoje, dezoito anos depois, cansado de tanta lida, olhos ardidos das muitas jornadas, pele enrugada pelas dores dessa vida, Antônio retornava ansioso para rever Dona Celeste, reencontrar aquela casa de sonhos.

Há poucos meses ele havia largado da vida de caminhoneiro, por conta de uma doença nos pulmões, coisa adquirida por muita fumaça e poeira de estrada, além de ter ficado diabético e com o coração já começando a dar sinais de querer cobrar os anos de desassossego e solidão. Mas ainda assim mantinha acesa na alma a esperança de poder encontrar um pouco de paz e principalmente de cumprir uma promessa; história que até hoje traz arrepios só de lembrar.

E aquela manhã surgia como um retorno às suas origens. Quem sabe depois de cumprida a missão que o fizera regressar, ele pudesse sossegar o corpo e o espírito de tantas andanças, fixar moradia na cidade e com o fruto da venda do caminhão e mais um bom dinheiro que conseguira guardar, comprar uma vendinha e enfim descansar.

Já na chegada junto à porteira da chácara ele percebeu algo estranho, como se o tempo passado tivesse alterado a energia daquele lugar: porteira fechada, grossas correntes, um enorme cadeado e na frente da casa um feroz cão de guarda tomava conta do quintal. Ao tocar a sineta para se anunciar, outros mais vieram ameaçadoramente a lhe afirmar que tudo havia mudado.

Eram quase dez horas da manhã, mês de junho, névoa fina, mas não o suficiente para esconder uma bela silhueta na varanda da casa... E aí ele se anunciou:

- Oh de casa! Aqui é o Antônio Caminhoneiro, Dona Celeste esta?

- Um instante seu moço, que eu vou chamar a Vó pra lhe atender.

A porta da casa se abriu e uma senhora por volta dos seus oitenta e poucos anos, apoiada numa bengala veio em sua direção.

- Desculpe seu moço, Antônio de quê, é o seu nome? De onde o senhor vem, e o quê o traz a este lugar?

- Dona Celeste lembra-se de mim? Eu sou o Antônio que há muitos anos atrás vendia suas frutas pela cidade no meu caminhãozinho, num sabe?  Vim visitar a senhora, matar a saudade do seu café com canela, de sua prosa gostosa e dos seus aconselhamentos. Vim também trazer notícias da Anunciação e uma cartinha que ela pediu para entregar.

Naquele instante Dona Celeste ficou pálida como a cera de uma vela, e perdendo a força nas pernas, sentou-se junto à porteira e desandou a chorar.

- Acode aqui minha jovem! Acho que Dona Celeste está passando mal, acode rápido, minha filha!

A jovem mais que depressa veio até a porteira, e abraçando a velha, olhou furiosa, colocando-lhe a culpa por aquele quase desmaio.

Mas a velha era muito forte e logo se restabeleceu e disse para a menina:

- Cecilia prende os cachorros pro seu Antônio poder entrar, ele é gente amiga e eu estou doida para saber direitinho esta história de cartinha da Anunciação, que eu num estou é entendendo mais nada!

Já sentados na varanda Dona Celeste foi logo perguntando:

- Conta logo esta história direitinho. Cecília, traz um café pro moço.

- Pois é Dona Celeste, o que se deu tem uns três ou quatro meses e foi na minha última viagem. Vindo de Vitória em direção a Belo Horizonte, já com umas três horas de estrada, num posto de parada para o jantar, uma mulher de uns vinte e poucos anos me pediu uma carona; dizia que estava à procura de seu noivo e que depois que acertasse suas contas com ele, iria retornar a sua cidade, rever sua filha, falou que estava há muito tempo fora de casa, com muitas saudades e se eu podia lhe ajudar. Eu respondi que sim, que se tudo corresse bem, dentro de umas três horas ou quatro horas, nós iríamos chegar a Belo Horizonte e que ela podia se acomodar.

- Obrigado moço! Ela disse. O senhor está me reconhecendo, não está não?

- Eu respondi que não, mas que achava a sua fisionomia familiar.
- Aí ela respondeu que já tinha andado tanto por aquela estrada que provavelmente eu já havia lhe dado alguma carona, ou então esbarrado com ela em algum posto de estrada.

- Eu respondi que sim! Era bem provável.

- Seguimos então viagem e quase chegando a Belo Horizonte, perto da meia noite, uma coisa muito estranha me aconteceu. Eu simplesmente apaguei, dormi ao volante e nem sei dizer como não causei um acidente.  Foi tudo muito esquisito, pois eu me lembro de ter acordado uma vez, só que não conseguia me mexer, visão meio turva, e ao meu lado aquela mulher a me dizer:

  - Fique tranquilo seu Antônio, que eu lembro bem do senhor e não vou lhe fazer nenhum mal. Eu sou a Anunciação, neta da Dona Celeste, obrigado pela sua ajuda, pois tenho tentado, já faz um bom tempo, retornar para a minha casa, só que eu não consigo, toda a vez que vou chegando perto da cidade, algo que eu não sei explicar direito acontece e eu me vejo novamente próxima daquele posto de gasolina onde o senhor me pegou e hoje graças ao senhor eu consegui chegar até aqui. Vou colocar no seu bolso uma carta que eu escrevi, onde eu explico tudo o que me aconteceu. Promete entregar a minha vó? Tem também aí algumas palavras para a minha filhinha Cecília, eu preciso que ela me perdoe, pois só assim poderei descansar em paz.

- Acho que passei um bom tempo desacordado, só sei que amanhecia quando fui despertado por um grupo de pessoas, meu caminhão havia tombado do lado direito da estrada, em frente ao cemitério na entrada de São Domingos da Prata. Um médico me examinava, fui colocado numa espécie de maca e de lá pude ver todo o estrago, não sei como não morri.

- Seu moço, como é o seu nome? Perguntava um policial ao meu lado.

- Me identifiquei e em poucas palavras tentei contar o que me acontecera e perguntei ao policial se a moça que me acompanhava estava bem?

- Não tinha moça nenhuma não seu Antônio, o senhor estava sozinho na boleia do caminhão. Acredite, foi coisa de Deus o senhor estar vivo agora.

- Instintivamente coloquei a mão no bolso e lá estava a carta que em meu sonho delírio, a Anunciação disse que colocaria. Não abri, só trouxe até vocês cumprindo a minha promessa.

Dito isto, seu Antônio entregou a carta à Dona Celeste.

Dona Celeste não leu naquele momento, mas é certo que o tenha feito mais tarde. Tomada pela emoção dobrou o envelope e o guardou. E aí começo a falar sobre o motivo do seu espanto.

- Pois é Seu Antônio, o seu relato parece até as histórias que eu costumava contar. Tempos depois que a Anunciação saiu de casa para ir atrás daquele maldito rapaz, o corpo dela foi encontrado na BR. 262, perto de um posto de gasolina, parada de caminhoneiro, mais ou menos a três horas de Belo Horizonte, que provavelmente deva ser o mesmo posto que o senhor nos descreveu. O corpo dela foi transportado para cá e enterrado no cemitério da cidade, vou lhe dar o número da sepultura, se o senhor quiser pode ir até lá comprovar.  Na época, foi uma comoção geral, e de lá para cá, nossa vida nunca mais foi a mesma. 

- Na época a polícia andou investigando e conseguiram prender um caminhoneiro que com o pretexto de dar carona, aproveitou-se da minha menina e depois a matou. Cecília na época estava com uns seis anos e até hoje sofre com o que ocorreu, pois não houve jeito de esconder dela os fatos, cidade pequena, sabe como é que é...

Seu Antônio saiu de lá com uma tristeza enorme eu seu peito, que tragédia, quanta dor nos corações daquelas pessoas tão boas.

Foi no mesmo dia ao cemitério e colocou flores na sepultura da menina de sorriso angelical que existia ainda em suas lembranças, fez uma oração sentida, e assim num repente em seu rosto um vento suave e perfumado, e como por encanto toda a tristeza que afligia seu coração foi dissipada. Naquele momento teve a certeza de que a Anunciação havia finalmente encontrado a paz.

Dona Celeste e sua bisneta Cecília com a ajuda financeira do Seu Antônio voltaram a produzir na chácara e o lugar resgatou a mesma energia boa do passado. Seu Antônio mora até hoje numa pequena casinha nas cercanias e investiu o restante do seu dinheiro numa pequena camionete e voltou a vender as frutas, verduras e legumes, cultivados naquela terra abençoada. 

Ele nunca perguntou a elas sobre o que estava escrito na carta, achou que devia a Anunciação o respeito à intimidade daquela gente sofrida.

Vó Miudinha enquanto viva, pelo menos uma vez por ano, gostava de visitar aquela gente, era muito amiga de Dona Celeste. Foi ela quem me contou esta história.


Memórias das Minas Gerais.

sábado, 28 de outubro de 2017

SINFONIA DO CAOS

    RONALDO BUONINCONTRO

    Uma cidade em ruínas
    grita dentro de mim,
    com suas ruas, travessas e praças
    tomadas pelo entulho,
    restos do meu passado,
    sentimentos deixados de lado,
    emoções largadas descuidadas
    na pressa de se chegar a lugar algum.

    Uma casa avarandada,
    quintal antes ajardinado,
    agora tomado de eras e baobás,
    e lá dentro muitos fantasmas,
    alguns já carcomidos pelo tempo,
    outros ainda assustam,
    gritam indecências e heresias,
    na esperança de me enlouquecer.

    Num dos quartos uma cama desfeita,
    uma tapeçaria inacabada,
    um trenzinho elétrico quebrado,
    uma escrivaninha empoeirada,
    numa das gavetas um monte de cartas,
    alguns poemas, rascunhos,
    noutra um álbum de retratos,
    coisas deixadas para trás.

    Aqui fora, não reconheço a minha cidade,
    e as pessoas numa língua estranha
    tentam a todo custo se devorar,
    gritam impropérios, ameaças,
    destroem símbolos sagrados,
    debocham dos puros de coração,
    e eu desesperado me pergunto
    o quanto disso tudo eu fui capaz de causar.


SINFONIA DO CAOS

ABSURDOS

    NALDOVELHO

    A que absurdos nos arremete a poesia?
    Ao absurdo de acreditar na beleza da magia,
    ou no de semear o que a esperança nos propicia?
    Ao absurdo de mergulhar inteiros nos sonhos que temos,
    ou o de tentar perpetuar a realidade que cremos?

    A que absurdos nos arremetemos num poema?
    Ao absurdo de chorar paixões que cultivamos doentes,
    ou no de ousar transformar corações e mentes?
    Ao absurdo da solidão que nos devora faz tempo,
    ou no de tentar explorar os caminhos que temos por dentro?

    A que absurdos nos atiramos inutilmente?

sábado, 21 de outubro de 2017

RÉQUIEM PARA UM POETA MORTO

RÉQUIEM PARA UM POETA MORTO
RONALDO BUONINCONTRO


Faz algum tempo eu vinha premeditando isto e há dias atrás finalmente consegui meu intento: foram três tiros certeiros no peito e a chama que me aquecia e consumia estava morta. Se bem que ela ainda estrebuchou alguns poemas, poucos, mas sem nenhum talento; era ela ou eu!

Mais que depressa envolvi seu corpo em bandagens de linho, especialmente embebidas em resinas, para que mumificado pudesse ser colocado naquela que eu chamo de caixinha de encantamentos, e lá, bem no fundinho do meu quintal, junto a uma roseira branca e espinhenta, o enterrei; lacrando seu túmulo com pedras redondinhas colhidas nas margens de um rio chamado solidão. Fiz-lhe, então, uma oração emocionada e até chorei... Àquela altura a pobre alma já devia estar acertando suas contas com o Criador.

Agora estou livre para ser o que realmente sou. Não mais versos de amor e dor, metáforas, rimas, imagens, sentimentos tolos, bobagens, lágrimas sanguinolentas derramadas, estiagens, noites inteiras de insônia, solidão, nostalgia, não mais a pretensão de parir palavras de ternura, para depois abraçá-las em minha clausura, não mais a magia de asas que voem por dentro!

O mundo não precisa de poesia, os artistas e intelectuais de hoje, também não! São todos donos absolutistas de suas verdades e vivem de semear incompreensão.

O mais interessante e que depois de alguns dias, do meio daquelas pedrinhas redondinhas começou a jorrar uma pequenina fonte cristalina... Não beba desta água, eu pensei! Vai que você fraqueja e o poeta enterrado lá no fundinho do seu quintal resolve renascer.

Agora o que resta é sair pelas ruas, com mãos que possam distribuir bondades e braços de acarinhar os puros de coração!
 




sábado, 14 de outubro de 2017

A VIDA

    NALDOVELHO

    E assim sem mais nem menos
    a vida levantou o véu que cobria meu rosto,
    e extraiu dos meus lábios
    um sorriso doído de solidão e desgosto;
    derramou sobre o meu corpo
    a insanidade de uns poucos
    e com palavras amargas entupiu minha boca.
    
    E não se importou com a minha dor,
    tão pouco com a bagagem que eu trazia,
    muito menos com o amor que eu fora capaz.
    E o que restou foi a lembrança
    do que os seus gestos escondiam,
    e a vontade que nela existia
    de devorar meus sonhos,
    e assim ela os devorou.

    Desligou a televisão, abriu portas e janelas,
    viu florescer pelas ruas o sorriso das crianças
    e os sonhos dos puros de coração;
    mas uma vez mais não se importou;
    acostumada a manipular a realidade,
    fez da sua verdade um manto de incompreensão.

    Foi então que eu percebi
    que ela havia vendado os meus olhos
    na esperança de me fazer como tantos,
    condenando-me aos descaminhos
    dos que perambulam pela escuridão.
    Soçobrei, no entanto, pelos cantos,
    abraçado aos meus poemas:
    asas que eu tenho por dentro
    na busca da minha imensidão. 

terça-feira, 10 de outubro de 2017

DIA SOMBRIO

    NALDOVELHO

    Manhã nublada,
    dia sombrio de outubro,
    na orla o mar espanca o rochedo,
    pelas ruas o vento atiça meus medos.

    Nos jornais as notícias, o arrepio,
    o curto circuito, desencapados os fios
    e a estranha sensação de estar fora de hora,
    de não ser mais este o meu lugar.

    Acho que eu fui embora faz tempo,
    e nem sei se um dia vou voltar.

    Manhã nublada,
    dia sombrio de outubro,
    mexo e remexo em meus apontamentos,
    um poema amargo foi o que restou. 

domingo, 1 de outubro de 2017

A MORTE

    NALDOVELHO

    Longe de mim
    a morte desfaz os nós,
    desembaraça os fios,
    constrói novos enredos
    e diz que assim lhe ensinou o Pai.

    E ela é um anjo sofrido,
    carrega em sua montaria
    alforjes cheios de culpas
    e o rosto crispado
    pelos seus próprios ais.

    Longe de mim
    a morte é guardiã do depois,
    descortina caminhos de ir,
    conduz legiões de esquecidos,
    todos em busca da paz.

    A morte tem as asas
    encharcadas de lágrimas,
    dos amigos, dos inimigos,
    gente pobre, gente rica;
    neste caminho são todos iguais.

    Perto de mim
    a morte devora o meu tempo,
    em silencio tem dó da minha solidão,
    mas ri da pretensão do poeta
    de querer viver sempre um pouco mais. 

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

LOUCURA

    NALDOVELHO

    Há músicas que respiram dentro de nós,
    verdades que desfazem todos os nós,
    pensamentos que dissolvem a neblina,
    sentimentos que desvendam o amanhã.
    Por isso eu preciso de mais uma dança
    e que seja uma melodiosa valsa,
    pois eu ainda tenho olhos de perceber,
    ouvidos de escutar o que Você tem a me dizer
    e um coração apaixonado
    por todas as coisas que eu consigo crer.

    Eu tenho mãos de construir ternuras
    e eu bem sei que apesar da minha loucura,
    toda vez que escrevo um poema
    eu me sinto mais próximo de Você.

sábado, 23 de setembro de 2017

MANHÃS FRIORENTAS DE INVERNO

    NALDOVELHO

    Não deixe a porta aberta,
    as ruas ainda estão desertas,
    o dia não amanheceu por inteiro,
    lençóis, preguiça, seu cheiro,
    faz muito frio lá fora
    e é quente o seu aconchego.

    Não deixe a janela fechada,
    tem sempre um ventinho travesso
    querendo passear pelo quarto
    e ele traz cheiro de mato,
    possibilidade de mais um sonho,
    pois ainda é cedo para recomeçar.

    Não deixe fugir o pecado
    das suas pernas enlaçadas
    as minhas tremulas pernas,
    de seu sorriso abusado,
    da sua voz rouca em meus ouvidos,
    sutilezas, sussurros, segredos.

    Não deixe fugir o encanto
    do café forte e melado, 
    dos cigarros compartilhados,
    das manhãs friorentas de inverno,
    da possibilidade de encarcerarmos o tempo
    e nunca mais sentirmos saudade.



quarta-feira, 20 de setembro de 2017

PRIMAVERA

    NALDOVELHO

    O bruxulear de uma saudade,
    olhos embaçados, tantas verdades,
    um terço enrolado na mão direita,
    uma sombra, o silêncio, uma suspeita,
    madrugada que se arrasta pela cidade,
    é o sol que surge sem fazer alarde,
    é o dia que boceja em minha janela,
    vinte e um de setembro, fim da espera.

    Primavera que se assanha em meu jardim,
    lírios, crisântemos, jasmins,
    um anjo ao meu lado na espreita,
    uma sombra, o silêncio, uma suspeita,
    solidão companheira de tanto tempo
    diz que é hora de partir num pé de vento
    e o terço nas mãos suaviza meu coração,
    acendo uma vela e me ponho em oração.


segunda-feira, 11 de setembro de 2017

PARA ESPANTAR A SOLIDÃO

    NALDOVELHO


    Eu me lembro daquele menino
    que gostava de colecionar sonhos,
    tinha um olhar meio assim sem juízo,
    andava distraído pelas ruas
    e não raro tropeçava nas palavras que trazia,
    mas que por timidez quase não dizia.

    Até por isto outras manias ele desenvolveu:
    gostava de observar tudo o que ao seu redor existia,
    até aquilo que ele não via,
    mas que nem sei por conta de quê,
    ele milagrosamente percebia;
    não raro conversava com as paredes de sua casa
    e com todas as coisas que por lá existiam;
    dava nomes às portas e janelas
    e dizia que através delas ele podia perceber
    a noite e o dia, a tristeza e a alegria.
    O desamor não, pois essa palavra ele não sabia.

    Acho até que por causa disso
    ele resolveu aprender a fazer poesia,
    palavras, sonhos, conteúdos e significados,
    tudo bem misturado numa folha de papel em branco
    onde o risco dos tropeços ele não corria.

    Faz bem pouco tempo eu o encontrei,
    já não um menino, pois muito se passou.
    Até hoje ele cultiva suas manias:
    continua colecionando sonhos,
    dando vida e conversando com as coisas,
    e adora escrever poemas, parece até que são bons...
    Ele diz que é para espantar a solidão.


quinta-feira, 7 de setembro de 2017

NÃO

    NALDOVELHO


    Imaginem uma palavra que eu não posso dizer,
    asas que já não conseguem voar,
    olhos que não se prestam a perceber,
    ouvidos que não se interessam em escutar,
    braços que não se permitem o abraço,
    mãos que não se dedicam ao carinho.

    Imaginem uma música que eu não devo tocar,
    uma saudade que não eu não posso confessar,
    pernas que já não têm para onde ir,
    esquinas que eu não posso mais dobrar,
    ruas por onde não se pode caminhar,
    um coração que já não sabe como se apaixonar.

    Imaginem lágrimas que eu não posso chorar,
    um poema que eu não quero escrever,
    uma morte que eu não quero morrer.



sexta-feira, 1 de setembro de 2017

POEMA ESCRITO NA PEDRA

    NALDOVELHO


    Eu sei de uma carta escrita na pedra,
    ilusões alinhavadas em versos,
    palavras de puro desassossego
    de quem revelou seus segredos,
    vivenciou o anjo e o demônio,
    e depois de um tempo se perdeu.

    Eu sei de uma carta que pouca gente leu!
    palavras enxertadas de heresia,
    poema de solidão e clausura,
    versos forjados na demência de um poeta
    que ao rasgar mapas e planos,
    soçobrou naufrago do seu desengano.

    Eu sei de uma carta escrita, faz tempo,
    poema encharcado de ternura,
    vez em quando leio em voz alta
    na esperança de conseguir entender
    a alma demente de um sonhador,
    versos entrelaçados de amor e dor.