NALDOVELHO
Última casa,
lado esquerdo no final daquela rua e nela morava o Velho João, uma das pessoas
mais bondosas que eu já conheci. Pele negra, corpo curvado, cabelos embranquecidos,
parecia ter a idade da imensidão, pois atravessara o tempo, até bem pouco
tempo, desde a época da escravidão.
Já nascera
alforriado, o que de nada lhe adiantara, pois sua mãe não! E ela era a preferida do patrão. Só que a
Sinhá ao saber da prevaricação, enraivecida mandou o capataz dar cabo dela e do
neguinho excomungado, recém-nascido bastardo, filho das safadezas do sinhô e da
negrinha.
Só que o
capataz não teve coragem e ao perceber uma oportunidade de ganhar um dinheiro
extra, vendeu a negrinha formosa para um prostíbulo lá na Praia das Pedrinhas e
largou o neguinho bastardo na escadaria de uma igreja: Santo Cristo dos
Milagres, que ficava depois da última casa, no final da Rua da Desilusão.
Da mãe
formosa neguinha nunca mais se soube, pois uma tocaia deu fim ao capataz, pois
o patrão ao saber das ordens da sinhá e da cumplicidade do jagunço, não o
perdoou. E assim, o seu segredo acabou enterrado em cova rasa no Morro dos
Indígenas, por obra de uma alma caridosa que ainda rezou a Deus pelo Seu
perdão.
O neguinho,
por obra e graça do Santo Cristo dos Milagres, foi achado e acolhido pela Dona
Filomena, filha devota de Maria, mestiça como ele, de sangue e de coração. E
ele haveria de se chamar João, assim disse Dona Filó, e seria homem bom e
crente a Deus, trabalhador nas searas do perdão.
João
cresceu, e virou sacristão, limpava toda a igreja, e segundo sua crença tomava
conta de uma das portas do céu. Virou homem feito, se apaixonou, casou com Dona
Moreninha e com ela teve quatro filhos, sementes lançadas pelo mundo, e segundo
Seu João, crentes ao Pai, como manda a boa fé em Deus.
Dona
Moreninha, quando do intento do quinto filho, veio a falecer, e com ela, poucas
horas depois, a criança que sequer abrira os olhos. Para aumentar a tristeza do
Seu João, nem chegara a ser batizada, e disso o Velho João sempre se lamentava,
até por não entender o porquê de um anjinho inocente ser condenado à eternidade
do purgatório e por isso acabou por se afastar da igreja e assumir de vez a sua
negritude que a partir dali aflorara na sensibilidade despertada pela dor.
Sem que ele
soubesse como, virou sabedor das ervas e das rezas, curou e auxiliou muita
gente com sua bondade e sabedoria, e ainda que afastado da igreja e excomungado
pelo padre, continuou um homem crente a Deus e sempre nos dizia:
- Deus é perdão, é amor e compreensão, e
assim como me foi revelada a minha origem, eu sei também que a minha criança
está nos braços do Pai, e que aqueles que por aqui passam, um dia também
estarão.
Foi numa
época sombria, quando um grande amigo chamado Jorge andava todo enrolado e o
descontentamento a povoar sua alma, que eu o levei até o velho, e o convenci a
pedir ajuda para que pudesse sair daquele embrulho e seguir caminhada, vida a
fora, com suas próprias pernas e achasse o seu lugar no mundo e por que não? A
felicidade que ele sempre sonhara.
Lembro bem
daquela quarta-feira, na hora da Ave-Maria, Seu João sentado num degrau que
dava acesso a sua varanda fumava o seu cachimbo e tomava café com canela
adoçado com melado, e sorria bondosamente da aflição que corroía o coração do
meu amigo que cabisbaixo fazia uma oração. Acendeu aos seus pés uma vela,
colocou ao lado um copo d’água, e em cima das suas pernas um galho de arruda e
um crucifixo. Pegou um caderno surrado e por lá escreveu o nome de umas ervas e
seu preparo, e pediu-lhe absoluto segredo sobre a receita. Mandou usar por
trinta dias e que depois por lá voltasse para uma conversa e que ele iria lhe
preparar uma garrafada para fortalecimento do seu espírito.
Passado esse
tempo e com sua vida, por mais incrível que pareça menos desarrumada, ele
voltou ao Seu João para a tal conversa. Foi então que ele lhe disse:
- Meu filho, você já é homem feito, aprenda a
resistir à tentação das coisas fáceis da vida, pois foi isso que o colocou
nesse estado, e perceba que em nossa caminhada, existem muitos desafios e
obstáculos a serem ultrapassados, e principalmente muitos atalhos e que a
maioria deles, vai dar em lugar algum. Seja forte e caminhe com retidão,
alimente-se de coisas boas, de bons sentimentos e boas emoções, para que assim
fortalecido possa enfrentar as tempestades dessa vida com coragem e
determinação. Se chorar faça-o no aconchego de sua intimidade, e em silêncio:
seja um guerreiro, pois o Velho João vai sempre estar do seu lado, mas precisa
que você seja forte, pois Deus necessita de você para dar sentido a Sua
criação.
Sábias
palavras! Eu só não entendia direito na época como poderia o Jorge ajudar a Deus;
um pobre pecador, sem eira nem beira, e ainda sem muita compreensão. Mas
seguimos em frente, eu com a minha vidinha pacata e o Jorge, que a cada dia
melhorava um pouco mais, e o que de mais importante ficara em nossas mentes
fora a lição: coisas boas, bons sentimentos e boas emoções.
De quinze em
quinze dias, voltávamos ao Seu João, às vezes, só para lhe dar um abraço e
tomar um pouco daquele café milagroso, coado com uma pitada de canela e adoçado
com melado e pureza de coração.
O tempo
passou, e o meu amigo já com a vida equilibrada foi morar em outras paragens e
acabamos por perder o contato, assim como eu, por força das exigências e
atribulações do meu trabalho, acabei por me distanciar daquele lugar e
principalmente daquela alma caridosa que tanto amor nos ofertara, sem nada
pedir, sem julgar e com tamanha capacidade de compreensão. Mas a lição
permanecera: coisas boas, bons sentimentos e boas emoções.
Às vezes
quando a minha vida andava um tanto ou quanto pesada e meio cinzenta, eu
lembrava também, que só fortalecido poderíamos enfrentar as intempéries, e não
sei bem por que, vinha em minha boca um gosto de café com canela, e
inevitavelmente eu fechava os olhos e via com saudade a figura do Velho João.
Tempos
depois, com a vida mais calma, eu finalmente consegui voltar às minhas origens.
Mudança de emprego, de novo no bairro da minha infância e juventude, já casado
e com uma filha ainda pequena e obrigatoriamente uma prazerosa visita ao Velho
João. Queria que ele nos desse a sua benção, e principalmente que conhecesse a
minha semente.
Foi com
tristeza que ao chegar lá, não mais o encontrei. A velha casa havia sido
derrubada, e em seu lugar um terreno baldio, sujo e cheio de entulho, fora o
que restara e ao perguntar na vizinhança sobre o velho amigo, me informaram que
ele havia ficado muito doente e depois de um tempo falecera.
Sentei com
minha mulher e minha filha nas escadarias da igreja, e até por lealdade ao
velho, não quis entrar no templo, não quis fazer as minhas orações na casa que
havia condenado um anjo inocente ao purgatório e excomungado o meu velho amigo,
e ali mesmo elevei o meu pensamento a Deus e orei.
Minha filha
olhava fixamente para uns degraus acima e me chamava atenção:
- Pai, tem um velhinho de cabeça branca,
sentado ali em cima sorrindo e me acenando, não será ele o Velho João?
Um gosto
forte de café com canela adoçada com melado me veio à boca, e no arrepio de
inevitáveis lágrimas, subi a escadaria depressa, e lá, embrulhada em um monte
de panos uma surpresa: uma criança, neném ainda, olhos arregalados, sorriso
puro e aconchegante, certamente uma benção deixada lá em consequência de algum
outro drama que eu desconhecia, mas que a vida poupara e me presenteara com sua
semente de amor, caridade e perdão.
A história,
de certa forma se repetia, e minha filha que em sua pureza e sensibilidade vira
o velho como se a sinalizar a minha nova missão, e que estranha e sabiamente,
apesar de sua pouca idade com uma voz firme e emocionada nos disse:
- Herança de santo papai, herança de santo!
Vamos levar o neném para casa, cuidar dele e vamos chamá-lo de João!
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