segunda-feira, 1 de outubro de 2018

O VERDADEIRO HERDEIRO


L011-1053
O VERDADEIRO HERDEIRO
NALDOVELHO


Rua arborizada, segunda casa a direita de quem sobe, bairro do Fonseca, zona norte de Niterói. Por lá um velho alfaiate, o nome dele era Seu Germano. Calças, camisas e até meus ternos; caimento impecável, apuro na escolha dos tecidos, coisas que nunca mais encontrei em outro profissional do gênero. E ele era também um bom papo, homem vivido, de enorme sabedoria e sensibilidade, bom contador de histórias, um aristocrata por toda a nobreza de que era capaz, sempre um prazer ali estar e escutar quando ele dizia que através de suas mãos ele conseguiria ascender aos céus.

Era casado, segundo ele, há quase cinquenta anos com Dona Júlia, confeiteira de mão cheia, mulher de muita espiritualidade e senso de humor. Quantas tardes de sábado passei com eles e quanto aprendizado entre uma medida e outra, e sempre, e sempre acompanhadas de um café coado com canela, biscoitinhos recheados, e no final, um delicioso licor de amoras. Até hoje sinto nos lábios o calor daquele néctar, coisa difícil de esquecer.

Certa feita ele me contou sobre um tempo de puro encantamento, década de cinquenta, quando conheceu Dona Júlia que fazia suas compras no armazém de Seu Abílio, e que de imediato por ela, ele se apaixonou. Disse-me, então, que foi amor à primeira vista, e que a princípio ela nem o olhou, interessada que estava na escolha de suas frutas, pois na época já era precocemente conceituada por conta de suas tortas e bolos, e principalmente pelos licores que fazia. Mas que o que ele sentira fora tão forte que cuidadosamente ele se aproximou e pouco a pouco a conquistou.

Existia uma particularidade naquele casal que muito me atraia: uma espécie de harmonia alinhavada pela ternura que só dois espíritos de elevada estirpe conseguiriam desenvolver. Nossas conversas inevitavelmente recaiam sobre o espiritismo e a filosofia que envolvia aquela crença, o quanto de poder ali existia, a ponto de fazer-nos melhores, mais cônscios de nossas obrigações e mais fraternos com os nossos irmãos.

Dona Julia, era o que na crença denominamos de médium, e sua especialidade era a da psicofonia. Dizia-nos trabalhar com uma freira cujo nome em sua última jornada teria sido Irmã Anna de Lourdes. Quantas mensagens de elevado teor e sabedoria através dessas manifestações eu tive o privilégio de presenciar. Seu Germano, sempre atento à sua amada mulher, fazia o seu assessoramento com muito respeito e carinho, e sempre e sempre com lágrimas nos olhos, tal a emoção que sentia quando isso acontecia.

E em minha lembrança, um precioso detalhe sempre despertou muita curiosidade e atenção: quase sempre as mensagens nos eram transmitidas ao som de música clássica. Mozart era o preferido, Strauss e Chopin, também tinham seus lugares de destaque. Mas havia uma exceção:  em  determinadas ocasiões, Billie Holiday, e quando isso acontecia não era as Irmã Anna de Lourdes que ela recebia. Certa feita, perguntei-lhe, constrangido pelo meu próprio estranhamento, o porquê, de ao fundo daquelas mensagens tão edificantes, o som daqueles blues viscerais e ardidos, coisa meio maldita e que nos arremetia a um sofrimento tamanho por uma vida desregrada e autodestrutiva, como havia sido a daquela mulher?

Ela sorria e me respondia:

- meu filho, o amargo faz parte das nossas vidas, assim como o mel que encontras nos meus licores, e se prestares bem atenção, sentirás que lá no fundo do teu paladar irás encontrar sempre uma pitada de amargor. Faz parte, e é parte importante. Além do quê, é preciso dar significância ao seu sofrimento, pois só assim ela conseguirá resgatar seus débitos.

Seu Juvenal sorria, e dizia que a Dona Júlia, além dos clássicos, era amante de um bom jazz e dos blues, principalmente os ardidos, e que ele também o era, pois havia aprendido com o convívio, a perceber a emoção que aquelas músicas passavam e o aprendizado que a descoberta de quê, muitas vezes, um erro abre a possibilidade de um novo caminho e que ao final dele, mais sabedoria iriamos encontrar.

Deus meu, aquelas palavras só aumentaram o meu estranhamento. Eu sentia como se ali houvesse uma ode ao erro, uma exaltação do pecado, e mais confuso eu ficava.

E ela me dizia:

- meu filho, para de julgar! Cada pessoa carrega em suas malas, erros e acertos, e esses fazem parte do crescimento necessário para que se possa atingir a luz. Sem o conflito constante entre o bem e o mal, entre a virtude e o pecado, entre o coração e a razão, entre a felicidade e a dor, ninguém alcançará a compreensão necessária para se transformar num obreiro do Pai, e aí está o verdadeiro objetivo da reencarnação. O nosso acesso se faz entre os ais. Faz parte da jornada, naufragar e soçobrar em frangalhos numa praia deserta qualquer, tropeçar e se ver ferido pelas pedras e cascalhos, sentir a sede e a fome para poder saber do valor de um riacho de águas claras ou de um pequeno e humilde pedaço de pão. Só quem conhece a solidão, saberá abraçar fraternalmente um irmão, só quem sobreviveu à dor do erro e do pecado, saberá ir aos lugares mais trevosos para resgatar um espírito em sua aflição. É preciso ao ser, a experimentação, pois é ela que aliada ao refletido conhecimento, nos trará a sabedoria.

E o Seu Germano complementava:

- por isso Billie Holiday e seus blues, por isso nesta casa você encontrará sempre tantos discos de jazz, e se você for ver bem direitinho, muitos boleros, tangos e fados.  Sem  contar as  sofridas páginas de Chopin e Strauss,


valsas maravilhosas encharcadas de amor e dor. Vivenciar todas essas coisas faz parte do crescimento do homem.

E Dona Júlia mais que depressa dizia:

- agora vamos tomar um bom café com os meus biscoitinhos e depois um licor, pois esse papo está bom, mas já foi muito longe.

E a sorrir se apressava em colocar a mesa.

O certo é que foi naquela casa e através dos ensinamentos daquele casal, que eu virei um amante da boa música, principalmente dos blues e do cool jazz. E vejam: eu não tenho nenhuma dúvida que foi a partir daquela fonte de amor, conhecimento e ternura que eu abracei o espiritismo; não como religião, já que eu me considero um homem sem fé, mas pelo conteúdo filosófico dos ensinamentos essenciais para o crescimento do ser. 

Dona Júlia fez sua passagem já tem bem uns dez anos. Seu Germano partiu fisicamente de nós, cinco anos depois e sua casa com todos os móveis e utensílios, hoje, se encontram abandonados, sendo devorados pelo tempo. Dizem que por desentendimento dos herdeiros, pois apesar de não terem tido filhos, sempre existirão aqueles, os colaterais, que passaram toda uma vida sem dar valor ao que de bom por ali eles podiam colher, mas que na hora da herança não se sentem constrangidos pela ilusão dos bens materiais e brigam, até não poder mais.

Nessa história, a bem da verdade, eu espiritualmente me vejo como o verdadeiro herdeiro, por todo ensinamento obtido com aquele casal, tendo inclusive, um pouco antes da morte do Seu Germano, recebido de presente seus preciosos discos de vinil, que guardo com o maior carinho, e os cadernos de receitas da Dona Júlia, que quem sabe num momento apropriado, destinando a renda para a caridade, eu possa ter o prazer de publicar.

De resto: muita saudade e a sensação de que a vida ficou um pouco mais sem graça, pois é sempre duro para os que ficam, a consciência da perda dos seus referenciais.

Estejam onde estiver, sei que eles estão juntos. Ele com as suas costuras, ela com as suas tortas e licores, e eu não tenho dúvidas que através de suas mãos mágicas e da nobreza de suas vidas, os dois ascenderam aos céus.

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