quinta-feira, 15 de novembro de 2018

O ÚLTIMO FRUTO


NALDOVELHO



Numa região serrana do sul do Brasil, dia claro de março, lá pros idos de 1954, um pequeno lugarejo amanheceu em polvorosa por conta do nascimento do filho da menina Do Rosário. Triste mistério que desde o início da gravidez da moça, nem os pais, nem o pároco ou mesmo o encarregado do policiamento do lugar conseguiram elucidar.

Tudo começou numa tarde friorenta de junho quando Do Rosário, distraída nos seus sonhos de menina moça, ao passear pelas áreas de cultivo, perdeu a noção do tempo, viu o anoitecer envolvê-la, e assim o foi de uma forma tão intensa, a ponto de embaralhar seus caminhos, impedindo-a de retornar ao lar. Do Rosário, depois de muito caminhar, cansada e com medo de prosseguir no escuro, resolveu se refugiar aos pés de uma velha e frondosa macieira com a intenção de descansar, para assim que seus olhos estivessem acostumados ao breu, tentar retornar para sua casa. Mas o cansaço foi mais forte e ali mesmo ela adormeceu.

Seu Domiciano e Dona Idalina, pais da menina, aflitos com o sumiço da mocinha, preocupados com os perigos da noite e com frio característico da região, juntaram forças com alguns vizinhos mais próximos e saíram a sua procura. Andaram a noite toda, pois eram muitos os caminhos e os pomares carregados, quase prontos para a colheita, dificultavam ainda mais a tarefa, pois não deixavam a claridade da lua e das estrelas passar. Foi então que quase ao amanhecer, um grito de dor chamou-lhes a atenção e lhes deu a pista precisa para a trajetória a ser tomada naquela empreitada.

E assim foi: pouco tempo depois lograram êxito e a encontraram abraçada a uma velha e frondosa macieira, já estéril pelo tempo, que ali estava ainda por pura homenagem pelo muito que ela havia produzido em suas colheitas. O dono do cultivo sempre dizia que ela havia sido a primeira e ninguém deveria tocar nela.

Só que a cena era, ao mesmo tempo, motivo de alívio e tristeza, pois a menina estava com sua roupa rasgada e havia em sua saia uma marca enorme de sangue à altura do baixo ventre e tudo indicava que ela havia sido molestada.

Do Rosário foi imediatamente levada ao médico do lugarejo, confirmando-se a suspeita: a menina havia passado por uma experiência das mais traumáticas, sendo constatada também uma febre muita alta, provavelmente agravada pelo frio da noite.

A menina ficou desacordada por mais de dez dias, até que a febre cedeu e ela enfim despertou.  Acordou, mas nada disse, olhos fixos na janela, num misto de medo e ansiedade e por muito custo começou lentamente a se alimentar, aconchegada ao carinho e tristeza de sua preocupada mãe.

Daquele dia em diante, Do Rosário, se recuperou prontamente, mas manteve-se calada sobre o acontecido, nada dizia a respeito, era como se em sua mente aquela noite tivesse sido apagada, apesar da insistente bisbilhotice das pessoas, principalmente do pároco e da autoridade policial.

Com o passar do tempo, uma sombra de barriga somada aos enjoos característicos denunciaram a avassaladora verdade: a gravidez da menina, o que só fez aumentar entre o povo daquele lugar os comentários.

- Pobre menina, além de ter sofrido tamanha violência, a vergonha da gravidez e a sua vida destruída...

- Menina ainda, quem vai querer casar com ela?

Do Rosário, durante todo o tempo da gravidez, abatida pela situação, agia como se nada tivesse acontecido, e por mais que todos tentassem descobrir algo, obtinham a mesma resposta de sempre.

- Não sei o que me aconteceu, não me lembro de nada, não sei o que me aconteceu.

E não foi uma gravidez fácil: constantes enjoos, cólicas violentas, vez por outra uma febre muito alta que apesar dos cuidados médicos não encontrava explicação, que surgia assim do nada e horas depois passava, mas que a consumia. E a menina a cada dia mais enfraquecida, a ponto de não querer sair de casa, prostrada em sua cama, mal se alimentava, parecia até uma maldição, coisa difícil de ver.

Sua mãe, já desesperançada com os acontecimentos, lá pelos cinco meses de gravidez da menina, resolveu então, contrariando a vontade do médico e do pároco, recorrer a uma velha rezadeira de nome Das Dores, parteira e feiticeira famosa na região.

Ao chegar à casa da menina, a velha foi logo dizendo:

- Todos para fora, me deixem aqui sozinha com a menina, que eu tenho muito trabalho a fazer.

Foi um dia e uma noite de rezas, chás e unguentos, e só ao amanhecer, a velha saiu da casa abatida como se tivesse levado uma surra e foi logo dizendo:

- A menina agora vai ficar bem, nada mais de dores, febres e enjoos.

Dona Idalina, aflita com tudo aquilo, foi logo perguntando:

- Ela e a criança vão ficar bem, Das Dores? A menina já sofreu muito e eu estou muito preocupada.

Disse então a velha:

- A menina Do Rosário vai ficar bem, eu garanto! Só não garanto a criança, nunca vi coisa igual, mas para Deus nada é impossível, vamos confiar! 

E se aproximando da Dona Idalina, cochichou ao seu ouvido:

- O que aconteceu com a sua filha tem a ver com a velha macieira onde ela foi encontrada, fico toda arrepiada só de pensar, é melhor a senhora não dizer nada, não dá para confiar no povo desse lugar, principalmente no médico e no pároco. Vamos entregar nas mãos de Deus e rezar.

Dona Idalina não entendeu direito o que a velha quis dizer com aquelas palavras, mas por via das dúvidas resolveu não comentar nada com medo do que o povo pudesse pensar.

E assim o tempo passou, até que finalmente era chegada a hora e as pessoas apreensivas e até penalizadas com tudo aquilo, comentavam:


- Que Deus lhe dê uma boa hora, e que ela possa voltar a ter a mesma alegria de antes, apesar da criança que vai chegar.

Como já era de se esperar, naquele dia, nem o pároco, nem o médico deram as caras na casa de Dona Idalina, pois não haviam gostado nem um pouco da interferência da rezadeira a quem volta e meia se referiam como uma feiticeira, alguém que havia feito um pacto com o diabo.

Seu Domiciano mais que depressa, saiu em busca de Das Dores, que ao chegar foi logo mandando que todos se retirassem e que só ficasse na casa a mãe da menina, e mais que depressa começou o trabalho para o qual havia sido chamada.

Foram muitas horas de aflição e dor, já que o parto estava encruado. Só ao amanhecer do outro dia a criança nasceu e para o desespero de Dona Idalina, que aos gritos demonstrava todo o seu desespero e horror, uma massa disforme, um verdadeiro monstro, pele grossa como se ali houvesse uma casca, coisa áspera e cheia de pequenos ramos que mais pareciam finas raízes... Não tinha olhos de ver, nem boca de chorar e dos ouvidos, pelo menos pareciam, escorria uma seiva esverdeada que exalava um forte cheiro de maçã.
              
Não durou nada a pobre criatura, praticamente um natimorto, pois tão logo a luz do sol banhou o seu corpo, estremeceu e morreu. Naquela altura, na casa havia um enxame de pessoas atraídas pelos gritos de Dona Idalina, curiosas para ver o motivo de tanto desespero.

A velha feiticeira, muito abatida, tratou logo de enrolá-lo numa grossa coberta, tirando-o da visão daquela gente e foi tratar da menina que, enfraquecida, com todo aquele esforço, corria evidente risco de morte, já que o parto havia lhe sugado toda a energia e luz.

Com muita firmeza, a velha feiticeira expulsou todos os curiosos do interior da casa e tratou da menina com toda a habilidade que possuía. Entoou rezas, e com suas ervas e feitiços, preparou um caldo grosso, uma espécie de sopa, que logo resgatou a menina dos braços da morte, salvando-a do pior.

O pároco e o médico da cidade foram logo chamados para as necessárias providências e da extrema unção. Assim que chegou, o médico foi logo examinar Do Rosário e vendo que apesar de muito debilitada ela não corria mais nenhum risco, tratou de prescrever alguns cuidados e remédios e foi examinar o pequeno ser.

Ao desenrolá-lo da coberta, não pode evitar uma expressão de nojo e espanto, nunca havia visto uma criatura como aquela. Mais que depressa, enrolou-o novamente e tratou de emitir o atestado de óbito. O pároco que a tudo acompanhava de perto, assustado com o que havia visto, só sabia segurar seu terço e rezar repetidamente a Ave Maria e o Pai Nosso, e de uma forma nervosa, com uma voz estridente, logo afirmando em tom de recusa, que por estar morto ele não poderia dar extrema unção àquela criatura, que em seu fanatismo religioso ele chamou de filho do demônio e aos gritos disse para todo mundo escutar que as portas do cemitério do lugarejo, estariam fechadas para aquela aberração.

Ainda naquele dia, Seu Domiciano, homem bronco mais de boa índole, tratou de preparar uma pequena caixa de madeira de modo a abrigar o corpo do pequeno ser, que apesar de toda a repulsa que a imagem do seu corpo viesse a lhe causar, era seu neto e merecia o enterro o mais digno que pudesse lhe dar.  Improvisou uma pequena cruz que cuidadosamente pregou na tampa da caixa e entalhou nela a seguinte frase: Deus lhe acolha meu filho, e partiu para o cemitério do lugarejo com a firme intenção de enterrá-lo.

Só que o pároco, assim que viu o bom homem a transportar aquele improvisado caixão, como se a adivinhar seu intento, se pôs a correr em direção ao cemitério junto com o sacristão, na firme intenção de impedi-lo, pois como se não bastasse ser aquele o corpo de uma criatura bizarra, na sua visão fruto de um ato do diabo; havia também o fato de que segundo a sua crença, como aquele ser não havia sido batizado, campo santo algum poderia abrigar. 

Juntaram-se a eles, boa parte da população do lugarejo e mais a autoridade policial, que incisivamente impediram o intento do velho Domiciano, ameaçando-o inclusive de prisão.

Sem ter como melhor resolver a demanda, Seu Domiciano, resolveu acatar a sugestão do médico do lugarejo que tentava mediar a situação, e partiu para fazer o enterro atrás do cemitério, fora do campo santo, numa pequena colina que existia por lá.

Anoitecia quando aquela estranha criatura baixou à improvisada sepultura, sob os olhares de reprovação daquele povo. No local, o velho, em cima da cova, cravou com pedras uma cruz e rezou fervorosamente para que o seu neto fosse acolhido pelo Pai e finalmente encontrasse a paz.

Feito isso, o velho se retirou em silêncio, com dolorosas lágrimas da revolta que lhe afligia o coração, e foi para a casa cuidar de sua mulher e filha, mas nesse momento, já com a intenção de que assim que a menina Do Rosário estivesse restabelecida, juntarem suas coisas mais preciosas para saírem daquele lugar.

Passado alguns dias, com a menina demonstrando força e vitalidade, Seu Domiciano procurou o dono do cultivo para quem vendeu rapidamente a sua pequenina gleba de terra. Não foi um valor justo, mas o suficiente para recomeçarem noutro lugar, onde ninguém conhecesse a triste história pela qual acabavam de passar.

Na véspera da partida, a menina Do Rosário pediu ao pai que a levasse ao pequeno túmulo improvisado, pois ela queria fazer uma oração pela alma daquele ser e assim terminar aquela triste história.

Ao chegar ao lugarejo, foram direto até a pequena colina onde o velho havia enterrado a criança. Lá chegando, Do Rosário caiu num pranto convulsivo e debruçada sobre o pequeno túmulo ficou por mais de uma hora, como se exorcizando o restante da sua dor.      

Rezou com fé e devoção, pedindo ao Pai que amparasse a todos e que perdoasse as pessoas daquele lugar, e principalmente que acolhesse a alma daquele ser inocente.

Mas ao se levantar para ir embora, sentiu no ar um forte cheiro de maçã e percebeu assim um tanto assustada, que aos pés da cruz de pedras cravada no local pelo seu pai, apesar do pouco tempo passado, uma pequena macieira despontava. Recuperada do susto, não pode evitar um sorriso, pois aquele sinal havia nela a certeza da imensa misericórdia do Pai e que Ele havia acolhido o seu filhinho.

O lugarejo até o dia de hoje é grande produtor de maçãs e a maior parte das pessoas que testemunharam ou participaram da história já foram ao encontro do Criador. Mas os fatos que acabo de descrever permanecem entre as pessoas daquele lugar, até porque aquela imensa macieira atrás do cemitério ainda está por lá. Ironicamente, na época da colheita, é a mais frondosa, só que ninguém se atreve, têm medo do que lhes possa acontecer.

Os pais da menina Do Rosário, também já não estão mais entre nós, e ela se casou com um colono da região aonde foram morar, mas não teve mais filhos, e vive até hoje, com quase noventa anos de idade, uma vida humilde e calma, mas guarda a triste lembrança daqueles dias e se põe a orar toda a vez que lembra.

Outra história que sobrevive até hoje entre as pessoas do lugar, fala sobre a velha feiticeira, que segundo reza a lenda, caminha até hoje pelas trilhas e lugarejos da região na prática da caridade, tudo por um prato de comida e um pernoite. O povo diz que ela é imortal. Quem sabe um anjo?

O novo pároco diz que tudo não passa de crendice do povo e que se há alguma verdade no que acabei de lhes contar, bem provavelmente deve ser coisa do demônio e nada melhor do que uma boa oração com os joelhos no chão numa súplica ao bom Deus para que Ele nos dê o seu perdão.                      

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