sexta-feira, 23 de maio de 2014

ROSA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS


NALDOVELHO

Coisa mais estranha!
Luz do abajur há tempos queimada,
assim, acesa, do nada?
Janela do quarto
que eu teimo em deixar
permanentemente fechada,
hoje, abusadamente escancarada!
E este perfume?
Acho que estou ficando louco.

Na cozinha, pratos e talheres lavados
e nenhum resto de comida
que eu tenha esquecido
no forno ou em cima da mesa?
Na sala, móveis arrumados,
minha casa impecavelmente limpa,
cheiro de alecrim,
flores por todo o canto,
especialmente monsenhor branco.  
Estranho, muito estranho!

Na estante, meus livros e CDs
caprichosamente guardados,
cada um em seu lugar.
Uma samambaia chorona
pendurada no canto da sala...
Não consigo entender!

Pássaros atrevidos em minha janela;
parece primavera, mas é abril, outono!

Acho que é um sonho,
pois acabo de escutar sua voz...
Mas como?
Rosa! Você voltou, veio me buscar?


- Naldo! Permita-me este poema, quase um bilhete, pois você vai gostar de saber que a Rosa por aqui esteve, e eu não podia partir sem lhe contar. Garoto, obrigado por tudo! Onde quer que eu esteja nunca esquecerei o seu carinho e a sua bondade. Estou muito feliz, ela finalmente veio me buscar.

Um grande e forte abraço, do amigo Juvenal.

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Nem sempre uma passagem se mostra através de um espelho, muitas vezes o acesso nos é permitido por uma porta, um corredor, uma janela... Às vezes, até por uma folha de papel em branco, e nela, assim como por encanto, palavras vindas nem sei de onde, a nos revelar histórias, preciosas lições de amor e compreensão.

E assim penso ter acontecido, e ainda guardo o bilhete como prova, é fico aqui tentando retratar no papel aquela última manhã do velho amigo, e me arrisco a negar que toda a sua obseção e loucura pela perda de sua preciosa companheira o tenham levado a imaginar e até a construir todo aquele cenário, prefiro crer que realmente sua querida e saudosa mulher tenha vindo lhe buscar.

E esta é a história de Seu Juvenal e Dona Rosa, um casal que quando mais jovem eu tive o prazer de conhecer e com quem eu tive a honra de conviver. Eram muito felizes, tinham dois filhos, um deles, hoje, meu compadre, e a história de amor que vivenciaram foi dessas que só se vê num folhetim, construída que fora com muita luta, muito sofrimento e, principalmente, muita coragem, pois tiveram que romper com todos os laços para poderem ficar juntos. Eram amantíssimos, o carinho e a ternura eram constantes, a ponto de transformar a casa onde viviam num templo de paz e amor onde adorávamos ficar.

Só que um dia, assim, sem mais nem menos, aos 65 anos, Rosa morreu, num desses infartos fulminantes que sem o menor aviso lhe acometeu.

Daquele dia em diante, Seu Juvenal, homem forte e alegre, numa sombra triste e sem vida se transformou. Dava pena de ver! A casa que antes era um brilho, agora largada, móveis empoeirados, o jardim morto, e o velho, costumeiramente de muitas palavras, se transformara numa pessoa soturna e amargurada. Tomar banho, então, muitas vezes nem tomava! Entregou-se em vida, arrasado pela falta que Rosa lhe fazia.

Seus dois filhos, já casados, e seus netos, toda a semana, passavam por lá, limpavam tudo, até banho o obrigavam a tomar. Meu compadre sempre relutou em colocá-lo num asilo e o velho, já com 70 anos, não admitia a ideia de ter uma cuidadora ou algo assim, ou mesmo de ir morar com qualquer um deles, e assim nos dizia: um dia Rosa virá me buscar.

Todas as manhãs quando por lá passava em direção ao trabalho, eu levava pão fresco e um litro de leite. Janelas sempre fechadas e Seu Juvenal, nem café havia tomado. No meio daquela bagunça, ia eu para a cozinha, limpava o que podia e passava um café bem forte. Depois, sentávamos na sala, ainda que empoeirada, para um dedo de prosa que invariavelmente girava em torno do mesmo assunto: Rosa e a saudade que ele sentia.

Numa quarta-feira, estranhei as janelas abertas! Fui entrando na casa como sempre fazia, e confesso: com o coração apertado por conta de uma sensação estranha; parece que eu já sabia.

A cena foi dessas de arrepiar: a casa toda arrumada, a mesa posta, café recém-coado, pão, manteiga, queijo, um jarro de monsenhor branco sobre a mesa, até um pratinho de biscoitos de nata, tal qual Rosa fazia, e Seu Juvenal sentado em sua cadeira, de banho tomado, com um sorriso no rosto, olhos fechados, morto... E em suas mãos o precioso bilhete. Mais que depressa liguei para os filhos... Meu compadre a chorar dizia:

- Naldo, neste fim de semana eu não pude passar por aí, nem levar as netas para abraçá-lo!

Até hoje fico a pensar aqui com os meus botões: Rosa veio buscá-lo!


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