segunda-feira, 29 de agosto de 2016

POEMA DA SALVAÇÃO

    NALDOVELHO

    E do fundo daquela manhã chuvosa,
    uma estranha voz sentenciou: cuidado!
    este menino vai nascer possuído,
    é só olhar no fundo do seu umbigo
    e vocês vão ver as marcas,
    palavras tantas, imagens, viagens,
    alma atormentada abraçada a loucura,
    a solidão e a clausura,
    e a nos trazer questionamentos e estiagens;
    este menino vai nascer possuído,
    será um poeta com certeza;
    procurem logo um pastor,
    melhor seria, ainda, um padre
    e levem para exorcizar.

    E o povo em volta gritava:
    melhor não!
    Ponham-no a ferros,
    aprisionado à sua solidão,
    amordaçado em delírio;
    coloquem-no em salmoura
    e deixem-no em martírio
    até que lhe caia os dentes,
    e seca se torne sua língua,
    e murcho o seu coração.

    E a mãe do menino sorria e dizia:
    que lá em suas entranhas
    o poeta já existia,
    Prometeu acorrentado aos versos
    sob a proteção dos aflitos,
    adaga de revelar conflitos,
    fênix que renasce dos escombros,
    pois mesmo que destruam o corpo,
    sobreviverá eternamente a alma
    abraçada a sua imensidão.

    E assim nos disse o Pai:

    POEMA DA SALVAÇÃO!

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

QUANDO

    NALDOVELHO

    Quando o dia amanheceu em teus olhos
    eu percebi carinhos que eu não sabia,
    portas que eu nunca supus que existiam,
    janelas de descortinar firmamento,
    caminhos de se morrer de paixão.

    Quando os teus olhos sorriram
    o dia amanheceu em meus passos
    e ao desvendar teus segredos,
    me vi cúmplice dos teus enredos,
    e abraçado a minha imensidão

    Quando tua voz sussurrou meu nome,
    eu escrevi poemas plenos e obscenos,
    senti tuas garras em mim cravadas,
    tuas presas a devorar minha carne,
    sangue, suor, saliva, sêmen, transgressão.

    Quando o dia anoiteceu em teus braços,
    eu senti a suavidade de um regaço,
    um cheiro abrasivo em meu corpo,
    lambuzado das secreções do teu corpo,
    minha casa, pasto e repasto, minha obsessão.


PAIXÃO

    NALDOVELHO

    E de repente eu percebi
    que aquela paixão era
    meio rosa, meio espinho,
    um tanto luz, um tanto descaminho,
    e trazia a aspereza das sombras,
    mas também a leveza das manhãs de outono.
    Às vezes era exuberante como a lua cheia,
    em outras, parecia tingida de sangue...
    E trazia a embriaguez do absinto,
    e era doída como quem implora e chora.

    E de repente eu percebi
    que aquela paixão deixou
    uma fome que me devora,
    perfume espalhado pelo quatro cantos,
    melodias que mais parecem prantos,
    harmonias de perdas e danos,
    vontade de tomar um conhaque,
    e a inevitável lembrança
    dos cigarros compartilhados...
    Acho até que por isto
    persiste até hoje a vontade de fumar.

domingo, 21 de agosto de 2016

CANTEIROS

    NALDOVELHO

    Preciso urgentemente cultivar canteiros
    onde eu possa espalhar sementes
    e possa fazê-lo de janeiro a janeiro:
    azaleias, sabiás, lírios e jasmins,
    sanhaços, canários, antúrios e bem-te-vis,
    bromélias, corrupiões, biquinhos de lacre,
    e se possível pencas de colibris;
    crisântemos, orquídeas e curiós,
    roseiras, todas sem espinhos,
    e em especial um pé de amor pelos meus irmãos,
    para que juntos possamos colher na primavera
    floradas de compreensão.

    Preciso urgentemente cultivar canteiros
    onde eu possa espalhar sementes,
    e possa fazê-lo de janeiro a janeiro:
    amoras, carinhos, figos, sorrisos, acerolas,
    pitangas, abraços, pêssegos, cerejas,
    tomatinhos pequeninos e até pimentas,
    goiaba, fruta do conde e limão.
    Poesia precisa ser doce, às vezes azedinha,
    em outras, ardida de doer;
    colheitas apropriadas para os corações.

    Preciso urgentemente cultivar canteiros
    onde eu possa espalhar sementes,
    e possa fazê-lo impunemente:
    alfazema, beladona, boldo do chile,
    camomila, capim limão, carqueja,
    cavalinha, cascara sagrada e coentro,
    erva doce, hortelã e erva de São João,
    esta última, especial para tratar depressão.
    A lista é enorme, foi Vó Miudinha quem me deu, 
    e elas curam de espinhela caída até constipação,
    só não curam desassossego de poema,
    para este mal não existe solução.


domingo, 14 de agosto de 2016

UMA CASA

    NALDOVELHO

    Eu sei de uma casa de se morar
    e por lá meu coração faz pousada,
    minha mente tece enredos,
    meu tempo caminha em segredo
    e minha vida se constrói em paz.

    Eu sei de uma casa de sonhar
    e lá eu preservo minha raízes,
    saudades, lembranças, retratos,
    cartas, bilhetes, histórias,
    coisas preciosas de se guardar.

    Eu sei de uma casa de aconchegos,
    lá as paredes escrevem poemas,
    gotejam palavras em versos,
    e despejam em mim delicadezas,
    sutil maneira de me abraçar.

    Eu sei de uma casa de imensidões,
    e por lá  sementes de estrelas pequeninas
    que mais parecem purpurina,
    mas que quando crescidas
    vão morar num infinito de se alcançar.

    Eu sei de uma casa que não é minha,
    e ela vive de portas e janelas abertas
    para todos que quiserem visitar,
    e minha alma agradece com uma prece
    aos que creem na magia que existe por lá.