terça-feira, 15 de dezembro de 2015

ELA

    NALDOVELHO

    Coração afrontado, vidraça embaçada,
    um gosto adocicado na boca,
    misto de vinho licoroso e saliva suave peçonha.
    No ar uma canção!
    Pouca gente consegue avaliar o estrago
    que uma música como esta nos faz,
    pouca gente sabe do estrago
    de que uma mulher como esta é capaz.

    A cidade me parece deserta,
    terça-feira, noite chuvosa,
    primavera, mês de outubro.
    Faz tempo ela perambula pelo meu quarto,
    chegou como quem nada queria,
    mas ainda assim tomou conta de minha vida.
    Diz que me ama, que conhece minhas dores,
    que é boa em cicatrizar feridas,
    mas que para isto é preciso
    que eu me permita a hemorragia.
    Às vezes eu acho que ela se alimenta do meu sangue.

    Tem dias que eu procuro por ela e não a encontro,
    apesar do seu cheiro, e eu o sinto o tempo inteiro,
    de algumas palavras deixadas pelo ar  
    e por esta música doída que não para de tocar.
    E quando isto acontece eu fico angustiado,
    não dou conta das minhas pernas,
    não consigo encontrar meus braços, seus abraços...
    E os meus olhos cada vez mais embaçados,
    e ainda assim eu não consigo chorar.

    Mas logo ela volta e olha dentro dos meus olhos,
    ri dos meus medos, me pede rosas sem espinhos,
    quer mais um poema, e sussurra em meus ouvidos
    palavras que eu ainda não sei pronunciar.
    E aquela canção continua a me atormentar,
    sempre em compasso lentos, pois lento é o tempo
    de quem não consegue deste sonho estranho acordar.



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