sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

O CADERNINHO

    NALDOVELHO

    Ele tinha um jeito tímido, um olhar tristonho,
    gostava de explorar praças, dobrar esquinas,
    caminhar por travessas, becos, ruínas,
    colher pelas ruas o que a vida nos ensina.
    Quando dormia aconchegado em seu canto,
    solitariamente sonhava com praias desertas,
    águas do mar acariciando rochedos,
    conchinhas, pedrinhas, multiplicidade de enredos,
    histórias que ele alinhava em segredo
    e na maioria das vezes acordado.
    Pouco falava, mas tinha um caderninho onde tudo anotava
    e sorria encabulado se alguém lhe pedisse para ler.

    Quando eu o conheci parecia ter a idade do tempo
    e dizia que há muito já havia passado a sua hora,
    que ali ainda estava somente a espera de alguém
    a quem pudesse dar seu caderninho,
    mas que era preciso que esse alguém concordasse
    em ser também um sonhador e que o fizesse em segredo.
    Perguntou se eu queria, disse-lhe então que não,
    pois eu queria ser um poeta e não saberia esconder minha dor,
    que tudo que eu colhesse logo transformaria em versos,
    que espalhados pelos quatro cantos falariam do meu amor.
    Ele riu e ainda assim me deu seu caderninho e partiu.
    Virou poeira de estrela, mora hoje numa nebulosa,
    a milhões de quilômetros daqui.

    Desde então eu falo, mas minhas palavras não ecoam,
    eu choro, mas minhas lágrimas não escoam,
    eu canto, mas o faço para dentro,
    prisioneiro que sou da solidão e do silêncio.
    Sei hoje, que a minha hora se aproxima...
    Quero ser enterrado com o maldito caderninho,
    não devo condenar ninguém a viver desta maldição.

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