terça-feira, 30 de setembro de 2014

PÉTALAS DE PURO DESATINO (R)

    NALDOVELHO

    Eu bem que olhei
    para as pétalas daquela menina!
    Apesar de saber
    que ainda que pequeninos,
    eram muitos os espinhos,
    eu olhei!
    E eu sabia que eram
    do tipo que se entranham,
    doem, inflamam...
    O que fazer,
    não pude resistir!
    Pétalas aveludadas,
    penugens douradas
    e evidenciadas no ângulo certo da loucura
    em que a tentação costuma nos envolver....
    Eu confesso, olhei e desejei!
    Pois aqui dentro do meu peito
    ainda pulsa um coração jardineiro.
    Pétalas, espinhos, desatinos...
    Acho que ainda vou ter
    que morrer muitas vezes
    para conseguir me libertar!

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

COOL JAZZ (R)

    NALDOVELHO

    Sentimentos, urgências, gasturas,
    num misto de carência e loucura,
    faz tempo eu perdi a hora,
    perdi o trem, a viagem, a coragem
    e fico de um lado para o outro
    aprisionado a este lugar.

    A suavidade de um piano
    desentranha meus desenganos
    e um trompete insidioso
    embaralha realidade e sonho
    e traz a danada da nostalgia,
    contamina todo o ar!

    Ainda gosto do sereno da noite,
    perco horas em minha janela,
    alinhavando em minha mente
    histórias que eu possa contar.
    Memórias, fantasias, coisas preciosas
    que eu teimo em guardar.

    Já não tenho vinte e poucos anos,
    os cabelos embranquecidos,
    os olhos entristecidos,
    Chet Baker a infernizar meus ouvidos,
    e por mais que eu implore
    ele não para de tocar.

    Sinto falta de um cigarro
    e ainda sonho com um conhaque.
    Já não tenho muitos planos,
    minhas pernas andam fracas,
    me emociono facilmente
    e não consigo disfarçar.

    Na mesinha de cabeceira,
    um relógio quebrado,
    um porta-retratos vazio,
    um livro de poesia,
    um terço e minhas guias.
    Ultimamente dei pra rezar.





quinta-feira, 25 de setembro de 2014

PARECE QUE NÃO TEM CURA (R)

    NALDOVELHO

    A noite veio assuntar a menina,
    chamou-a pelo seu nome de princesa
    e trouxe braçadas de estrelas
    para poderem brincar.
    Algumas, exuberantes,
    mais parecem diamantes;
    outras pequeninas,
    pontinhos brilhantes,
    lembram purpurina.
    A menina adora ficar na janela
    imaginando histórias,
    passa horas e horas
    conversando com os pontinhos no céu,
    estrelas que a noite não trouxe para brincar,
    deixou lá nos distantes.
    Às vezes vagalume vira estrela,
    e a menina caí na risada e inventa que é cadente.
    A mãe anda preocupada,
    acha que ela sonha demais.
    Outro dia entrou de repente no quarto
    e pegou a menina escrevendo num diário.
    A menina disse que eram poemas.
    A mãe ficou mais preocupada ainda,
    tanto, que anda até procurando uma rezadeira.
    Mas parece que isto não tem cura!
    Tem gente que vive uma vida inteira procurando
    e não consegue sarar.
    A noite adora beijar os olhos da menina,
    diz que é para ela melhor sonhar.



quarta-feira, 24 de setembro de 2014

PEQUENAS RANHURAS

    NALDOVELHO

    Nas paredes da minha casa
    eu percebo pequenas ranhuras,
    minúsculas rachaduras.
    Delas brotam gotículas,
    como se a casa toda transpirasse
    pelo esforço de me manter
    vivo e protegido.
    Percebo também
    que paredes têm ouvidos
    e que com elas eu posso conversar.
    Prestando bem atenção,
    chego a ouvir
    batidas de um coração.
    Já sei quando estão felizes,
    sei até quando estão zangadas,
    elas não conseguem disfarçar.
    Ontem por exemplo eu percebi
    paredes entristecidas!
    Acho que elas sofrem comigo...
    Toda a vez que escrevo
    sobre saudade ou nostalgia,
    eu o faço nos braços de um bolero,
    ou então sob a melancólica ardência 
    de um cool jazz.
    Preciso ensinar as paredes
    que elas não precisam se desesperar,
    é só poesia!

terça-feira, 23 de setembro de 2014

SOBRAS DA DEMOLIÇÃO

    NALDOVELHO

    No lugar onde residem minhas memórias
    caminham de um lado para o outro
    um batalhão de soldadinhos de chumbo,
    um palhacinho tocando bumbo,
    uma mocinha prendada com o peitinho de fora,
    já nem lembro o nome dela, mas isto não importa agora,
    um gato safado, o nome dele era veludo,
    um menino franzino que tinha medo do escuro,
    o babaca do garoto que roubou meu carrinho de rolimã.

    Num canto da casa onde residem minhas memórias,
    um trenzinho sem trilhos, um pote de bolas de gude,
    revista de mulher nua, perdi minha virtude,
    uma montanha de livros, já lidos e relidos,
    uma cortina rasgada, tecido puído,
    várias promessas, parte delas quebradas,
    muitos desenganos, farpas espetadas,
    retratos amarelados, uma tapeçaria inacabada,
    uma paixão de criança, namoradinha de portão.

    Na zona onde residem minhas memórias,
    ruas e esquinas de uma cidade deserta,
    uma porta fechada, uma janela entreaberta,
    um beijo molhado, um reinado sem trono,
    sentimentos estranhos, histórias sem dono,
    uma lua cheia enlouquecida, cicatriz ardida,
    foram dias e noites a lamber as feridas,
    escrevi vários livros, madrugadas de outono,
    construí uma casa com as sobras da demolição. 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

VELHA SENHORA


NALDOVELHO

E existia aquela velha senhora que pelas ruas do meu bairro, gostava de distribuir sorrisos e se alguém se aproximasse e permitisse, distribuía abraços também.

Era uma mulher cheia de alegria, mas com o corpo lapidado pelas agruras desta vida e trazia cicatrizes que ninguém via, mas que existiam, acho que por dentro.

O povo diz que era uma grande rezadeira, eu só sei que ela pouco falava e quando o fazia era numa língua estranha que ninguém entendia.  Tão pouco sabíamos o seu nome, e eu acho que nem ela sabia, pois quando perguntada, ela simplesmente sorria.

Nem faz muito tempo, numa noite escura de outono, relâmpagos, muita chuva e ventania, num repente ela desapareceu e no casarão abandonado onde dormia, nem seus panos velhos encontraram, e no cômodo que ocupava só uma imagem de Santa Barbara ao lado de uma estranha marca no chão, que mais parecia ser feita a fogo, e um forte e delicioso cheiro de arruda a tomar conta do lugar.

Hoje, eu fico aqui pensando na falta que ela nos faz, pois pelas ruas ninguém mais sorri; abraço então, nunca mais eu vi, e há pouco, pela manhã, na velha casa abandonada, um monte de homens e máquinas trabalhavam na demolição e removiam todo o entulho, escombro ou não!

Disseram que vão construir por ali um asilo, um desses lugares onde se guardam idosos, gente que quase não sorri e só fica esperando a sua hora de partir.

Coisa esquisita anda acontecendo pelas ruas do meu bairro, o povo anda meio sem graça, só falta de repente descobrir que eu também não vivo mais por aqui.

   

domingo, 21 de setembro de 2014

FOI O QUE NOS RESTOU

    NALDOVELHO

    E existiam aqueles retratos,
    terceira gaveta, lado esquerdo do armário,
    e neles você passeava pelas ruas,
    dava comida aos pássaros,
    brincava de amarelinha nas calçadas,
    chegava de repente de viagem,
    entrava abusadamente em meu quarto,
    deitava preguiçosa em minha cama
    e ronronava sob as cobertas,
    manhã cedo, novembro, inda me lembro,
    café da manhã, cigarro compartilhado...
    Quando fotografei estava com você.

    Depois veio o incêndio
    e nele quase tudo se perdeu:
    lençóis, travesseiros, cobertas,
    livros, discos, suas cartas,
    algumas peças de roupa
    que você por lá deixou,
    muitas verdades não reveladas,
    segredos que você guardou.
    Seu cheiro também se queimou,
    ou então se perdeu
    misturado ao cheiro da fumaça
    que tomou conta da casa.

    Vez por outra ainda passo por lá,
    casa abandonada, em escombros,
    entulho para todo o lado,
    e os restos de um armário,
    terceira gaveta, lado esquerdo do peito,
    vazia...

    Foi o que nos restou!

SOLIDÃO

    NALDOVELHO
   
    Solidão é casa
    que me aprisiona por dentro,
    refúgio de um louco,
    já nem lembro há quanto tempo,
    só sei que longe dela
    minhas pernas tremem,
    não consigo caminhar.

    Solidão é vento
    que acaricia meu rosto,
    afaga meus cabelos,
    beija a minha boca,
    escuta meus segredos,
    lamentos, enredos,
    rotas de desassossegos.

    Solidão é água,
    que envolve o meu corpo,
    mata minha sede,
    transforma dor em poema,
    já não sei viver sem ela,
    prisioneiro que sou
    dessa mania de sonhar.

    Solidão é labirinto,
    garrafa inteira de absinto,
    sangria desatada, estiagem,
    e tudo isto ao som de um bolero,
    com um quê de quero e não quero,
    teia que me aprisiona ao passado,
    encantamento que não quero quebrar. 

sábado, 20 de setembro de 2014

SETEMBRO

    NALDOVELHO

    Ah! Este sossego de águas mornas,
    de vento macio a causar arrepio,
    de amenidades das horas
    que às vezes são tão generosas comigo,
    de manhãs suaves de setembro,
    de azaleias floridas na janela,
    de passarinhada na amoreira,
    de não querer saber do mundo lá fora,
    de aconchego, quietude, silêncio,
    de poesia sendo gestada aqui dentro.

    Ah! Este sossego construído faz tempo
    por estradas acidentadas, ardências,
    inquietudes, loucuras, querências,
    de cicatrizes espalhadas pelo corpo,
    já não doem, mais parecem medalhas,
    coisa adquirida nas esquinas desta vida
    e no labutar constante nos escombros
    na busca de me reconstruir por inteiro,
    pois ainda que me faltem pedaços,
    eu os preencho quando estou em teus braços.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

QUANDO CRIANÇA

    NALDOVELHO

    Quando criança
    uma pequena fonte me sorria
    do fundo do meu quintal e eu sabia.
    Pequena mesmo,
    pouco mais que um olho d’água,
    e ainda assim ela sorria,
    e brotava cristalina
    no meio daquelas pedras,
    e ao lado dela
    ao anoitecer eu via
    seres pirilampos,
    pequeninas luas que um dia
    seriam cheias lá no céu.

    E daquela pequena fonte eu bebia
    águas que sorriam
    toda a vez que eu dizia
    do amor que eu sentia,
    e aí mais sede me dava
    e eu também sorria.

    No fundo daquele quintal
    uma pequenina fonte,
    e só eu via!

    Acho que criança ainda,
    eu já gostava de poesia,
    só que eu ainda não sabia.


quarta-feira, 17 de setembro de 2014

EU NÃO SABIA

    NALDOVELHO

    Ela gostava de traçar caminhos
    que me trouxessem de volta ao cais,
    e quando eu ali chegava
    invariavelmente a encontrava
    vestida de horizonte,
    perfumada e amante,
    com seus olhos de devorar,
    com sua boca de beijar,
    beijos adocicados,
    vermelhos, molhados.

    E ela gostava de sussurrar indecências
    nos meus ouvidos atentos,
    e de dar de beber aos meus lábios sedentos,
    e assim me abrasava em seu colo,
    se embaraçava em meus pelos,
    depois, adormecia e ronronava
    sonhos de varar madrugadas,
    para no dia seguinte
    transformá-los em poesia,
    mantras sagrados de maré cheia,
    que cada vez mais me seduziam
    e eu não sabia!

    E ela gostava que eu fosse embora,
    só para poder sentir saudades, ela dizia,
    só para poder chorar distâncias,
    e aí, escrevia mais poemas,
    e esculpia nas pedras seus sonhos,
    e assinava embaixo meu nome...
    
    Muito do que lhes conto hoje, lhe pertencia,
    só que na época eu não sabia.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

ESSES AÍ QUE NÃO SABEM

    NALDOVELHO

    Esses aí que nem sabem amar direito
    e que falam na língua dos homens
    o que os olhos não demonstram,
    que invadem o mundo dos outros
    e se apropriam do que não lhes pertence;
    não sabem do cultivo e da perda,
    não sentem a fome do próximo,
    apesar de dizer que se importam
    com a dor dos seus irmãos.

    Esses aí que nem sabem do carinho,
    mas que falam na língua dos homens
    coisas que suas almas ignoram
    e gritam palavras de ordem,
    mas desconhecem a palavra compreensão;
    não sabem erguer abrigos
    que possam receber desvalidos,
    tão pouco da arte de transformar o inimigo
    num novo amigo e irmão.

    Esses aí que não conhecem a ternura,
    que só são fraternos com os seus iguais,
    que criam os seus na intolerância
    e que enriquecem explorando a ignorância;
    não percebem que irão à loucura,
    pois um dia terão que viver na amargura
    dos que em verdade nunca souberam
    construir caminhos de imensidão.


domingo, 14 de setembro de 2014

ALGUMAS COISAS EU SEI, OUTRAS NÃO!

   NALDOVELHO

   E eu sabia que aquela tarde havia devorado meus sonhos,
   o mês era de inverno, e a chuva fina em meu rosto
   a disfarçava as lágrimas, mas ainda assim eu sorria.
   E eu vi o nosso amor morrer todos os dias um pouco mais,
   pois havia enveredado pelas trilhas da paixão.

   E eu sabia daquela casa que acolhia meus fantasmas, 
   dias friorentos de junho, e por lá eu também me refugiava
   na esperança de te esquecer.

   E eu assistia o tempo a devorar meus sentimentos,
   até que um dia eu precisei sair dali,
   até que um dia eu tomei coragem e parti.

   Hoje quando eu volto e passo em frente aquela casa,
   percebo fantasmas na varanda, escuto vozes na sala,
   apesar das janelas trancadas, eu penso que ainda moras ali.
   
   E eu sabia que um dia, qualquer dia, nós iríamos nos rever,
   só não sabia que eu ainda iria sofrer.