quarta-feira, 27 de junho de 2018

A INEVITÁVEL DOR DA SOLIDÃO


    NALDOVELHO

    Eu percebo um ar de delicadeza
    nos amanheceres friorentos de julho,
    meu coração enroscado em cobertas,
    lá fora uma névoa fina e fria,
    aqui dentro uma preguiça danada,
    a janela ligeiramente entreaberta,
    um vento macio, quase uma aragem,
    e o sol num bocejo a me dizer: bom dia!

    Eu percebo um ar de sutileza
    no café passado sem pressa,
    a mesa posta e a certeza
    do carinho molhado de orvalho,
    você prometeu que vinha,
    chegou bem cedo e a tempo
    de ver em meus olhos a saudade.

    Eu percebo um ar de cumplicidade
    na fumaça dos cigarros compartilhados,
    no sorriso que eu colho em seu rosto,
    na poesia que brota do seu cheiro,
    que permanece mesmo depois
    que você vai embora,
    e fica assim impregnado
    por todos os cantos e lados,
    principalmente nos travesseiros.

    Eu percebo certa leveza
    nos entardeceres passados ao seu lado,
    música suave, vinho tinto e rascante,
    o seu: ligeiramente doce e inebriante;
    na mistura de suores, odores,
    salivas trocadas, momentos sagrados,
    no adormecer e no acordar
    ao seu corpo aninhado,
    ainda que eu saiba que depois
    você irá viajar para bem longe,
    deixando travesseiros e lençóis molhados,
    a nostalgia própria de um passado,
    e a inevitável dor da solidão.


sábado, 23 de junho de 2018

COMO SE FOSSE UM LOUCO


    NALDOVELHO

    Eu vou atravessar toda a cidade
    só para te ver surgir
    por de trás do horizonte,
    e vou aproveitar para colher
    fios dourados do teu amanhecer,
    e com ele tecer um manto
    que me proteja no meu anoitecer.

    Eu vou atravessar toda a cidade
    só para colher águas macias,
    banhar minhas feridas,
    me entregar à magia,
    e como se fosse um louco
    nadar até aquele rochedo,
    soçobrar náufrago em teus braços.

    Eu vou atravessar toda a cidade
    só para dizer que te amo,
    e vou mostrar a todos minha paixão,
    causar um escândalo,
    rasgar mapas, roteiros e planos
    e não importa até quando,
    ou se eu vou sobreviver.

    Eu vou atravessar toda a cidade
    só para escrever nas pedras o teu nome,
    elegia ao amor derradeiro
    por quem bebeu todo o meu sangue,
    fatiou minha carne em postas
    deixou marcas, profundas marcas, 
    me matou de prazer.




quarta-feira, 20 de junho de 2018

DEIXEM EM PAZ O MEU POBRE CORAÇÃO


    NALDOVELHO

    Se eu enterrasse meu coração no fundo do quintal,
    não mais teria que me preocupar com a saudade,
    tão pouco saberia das perdas e desencantos,
    escrever poemas de amor, não mais saberia...
    Caminharia, então, por recantos da minha cidade
    sem me preocupar com as armadilhas da paixão,
    não teria mais insônia, nem a danada da nostalgia,
    coisas próprias dos que são reféns da solidão.

    Se eu enterrasse meu coração no fundo do quintal,
    lágrimas no canto dos olhos não mais incomodariam,
    nem cicatrizes que doem na mudança de tempo, 
    medo de madrugadas cinzentas, também não teria,
    dormiria esquecido na aridez de um quarto escuro
    sem me preocupar com o que existe atrás do muro,
    pois descortinar novas realidades eu não saberia,
    e finalmente curaria a maldita da inquietude.

    E no lugar em que meu coração estivesse enterrado,
    lírios, jasmins e crisântemos floresceriam,
    uma fonte de água cristalina surgiria
    e ao lado do pequeno túmulo um epitáfio:

    deixem em paz o meu pobre coração!    










segunda-feira, 18 de junho de 2018

CAIXINHA DE MÚSICAS



    NALDOVELHO

    Eu tenho uma caixinha de músicas
    e lá eu guardo as mais belas canções,
    e são tantas!
    Vez em quando pego uma
    e invento enredos, poemas,
    revestidos de trilhas sonoras
    que alimentam o meu ser.

    Existem músicas que eu percebo
    encharcadas de orvalho,
    são elas que preparam o amanhecer,
    harmonias próprias da madrugada,
    e eu já amanheci tantas vezes
    que até virei um especialista
    na arte de sobreviver. 

    Outras, penso que sejam outonais,
    e quando isso acontece
    eu fecho os olhos e me vejo
    caminhando pelas ruas da cidade
    de braços dados com um tempo de delicadeza
    apinhado de folhas caídas das árvores,
    brisa macia, tons de dourado, renovação.

    Gosto também daquelas
    que cheiram a entardecer...
    Café servido sem pressa,
    as rolinhas passeando pela sala,
    janelas propositadamente abertas,
    e a lua que chega a me dizer saudade:
    eu vim aqui só para te ver.

    Mas existem também
    as ardidas de desencontros,
    de insônia que brota insistente
    das paredes do meu quarto,
    Lady Day sussurrando em meus ouvidos,
    uma garrafa de uísque já pela metade
    e eu me percebo abraçado a um blues.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

DESENHOS NO AR



    NALDOVELHO

    Pegue um lápis
    em sua caixinha de magia
    e desenhe no ar uma nuvem,
    depositando nela muita luz. 
    Mas que seja azulada!

    Agora faça-a chover
    dentro do seu quarto,
    de forma a que suas gotas
    tragam para a sua pele
    o frescor da restauração.

    Depois desenhe um sol
    e deixe que ele amanheça;
    se quiser pode abrir a janela,
    pois este pequeno astro
    ficará cativo de sua imaginação.

    Perceba que gotas de luz
    que chovem azuladas
    quando misturadas
    a amarelidão de uma alvorada,
    fazem crescer relva verdinha.

    Agora um rosto de mulher,
    um sorriso, um olhar preciso,
    um carinho suave e aconchegado...
    Desenhe todas as coisas
    próprias da paixão.

    Aproveite e escreva
    um bom bocado de poemas,
    são ótimos para suavizar o coração,
    pois por lá não haverá mais espaço
    para o amargor da solidão.


quinta-feira, 7 de junho de 2018

VIAGEM PARA DENTRO DE MIM


    NALDOVELHO

    Eu fiz uma viagem para dentro de mim
    na esperança de saber qual seria o meu fim.
    Encontrei uma caixa apinhada de delicadezas,
    o antídoto para todas as minhas tristezas,
    enredos alinhavados faz tempo,
    madrugadas vadias passadas ao relento,
    a possibilidade de revelar meus segredos,
    a coragem de superar meus medos,
    o carinho da mulher amada,
    brisa macia, pele branca, suas sardas,
    música suave, vinho tinto e rascante
    e o seu: branco, doce, e inebriante.

    Eu fiz uma viagem para dentro de mim,
    mas por lá não consegui saber do meu fim.
    Encontrei um emaranhado de descobertas,
    clareiras, nascentes, densas florestas,
    o significado da palavra liberdade,
    a vontade de viver numa outra realidade,
    a ventura de ter muito mais do que eu mereço,
    muitas casas de passagem, muitos recomeços,
    uma gaveta lotada de poemas saídos dos escombros,
    uma oração, um terço, o aprendizado a cada tombo,
    a certeza de que nada tenho que seja só meu,
    a sabedoria dos loucos e a presença sagrada de Deus.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

UMA XÍCARA DE CHÁ INOCENTE


    NALDOVELHO

    Preciso urgentemente de um motivo
    para escrever um poema,
    um que seja um sopro de liberdade,
    um pote cheio de verdades,
    um ombro amigo numa noite escura,
    um gesto carregado de ternura.

    Preciso urgentemente de um motivo
    para continuar na estrada,
    um que seja muito mais do que um carinho,
    que possa extrair do meu corpo os espinhos,
    atirar pela janela os fantasmas,
    limpar do meu quarto os miasmas.

    Preciso urgentemente de um motivo
    que afugente dos meus dias a solidão,
    que me propicie sonhar com delicadezas,
    que traga luz às minhas incertezas,
    que me presenteie com um sorriso,
    que não permita que eu perca o juízo.

    Preciso urgentemente de um motivo
    para escrever um poema,
    um que me cure da inquietude,
    que me traga uma xícara de chá inocente,
    a misericórdia de um olhar complacente
    e que tenha a força de uma oração.