sexta-feira, 25 de abril de 2014

O ESPELHO - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS


E por aquele espelho surgiam figuras estranhas, imagens, às vezes até de lugares, vultos de pessoas, alguns mais ou menos definidos, outros tão claros como se verdadeiramente presentes, palpáveis, e assim então, sem que ao menos fossem convidados, materializavam-se e tomavam conta do ambiente. A maioria deles, conhecidos que volta e meia povoam meus sonhos, ou então, velhos camaradas que por um tempo caminharam lado a lado comigo... O interessante é que todos se mantinham jovens; só eu envelhecera, só eu jazia soterrado sob as agruras do tempo. Algumas figuras, desconhecidas ainda, como se por aqui estivessem, só de passagem, portadoras de alguma mensagem, ou apenas curiosas em conhecer o lugar. Aquele espelho era como um portal, uma maravilhosa e inquietante passagem, um caminho de ir e de vir. Só que existiam também aqueles, os compadres!

E assim foi, numa terça-feira, noite quente de março, de um ano qualquer, nem faz muito tempo, quase meia-noite, e um vulto, aparentemente familiar saltou do espelho, chegou para uma conversa, como se tivesse algo a contar e amistosamente falou:

- E aí meu compadre, quanta saudade! Acho que já faz uns quatro anos... Pois é meu amigo, tantas esquinas eu dobrei, que um dia não pude mais voltar, meu tempo acabou; um acerto de contas, um cabra que comigo esbarrou, não gostou e de repente, perdi!  

De pronto reconheci a voz! Amigo de muito tempo, companheiro das ruas, ombro a ombro pelas madrugadas desertas, e no muito que aprontávamos por aí. Fiz força para me recompor, pois a imagem que diante de mim se materializava não era nem um pouco agradável, mas prontamente respondi:

- Porra Magrelo, essa história de novo? Lembra-se de quando por aqui correu a notícia de que você havia morrido? Willian até me contou que foi à sua missa de sétimo dia e que a sua tia, coitada, desconsolada, chorava e dizia o quanto você era um cara boa praça. E depois você aparece no portão da minha casa, quase me mata de susto, vivinho da silva!

- Pois é meu compadre! Todo safado depois de morto vira bonzinho, principalmente no coração de uma tia, de uma mãe, ou de um amigo fiel. Só que desta feita é verdade, tanto fiz que um dia veio a cobrança e sinceramente até agora eu estou sem entender o porquê!  O cabra nem era meu desafeto, por quase nada, meteu o dedo e deixou quatro balas alojadas em meu peito, não deu nem para sentir dor.

- Magrelo! Num tem nem muito tempo, liguei para sua filha, para saber de você e ela meio assustada, sem saber direito o que dizer... Ela já sabia?

- Não meu amigo! Ela de nada sabia e ainda não sabe. O cara fez o serviço completo, foi lá pras bandas do Pantanal. Depois dos tiros, ele me jogou num braço de rio, era tempo de cheia, área alagada, rapidinho meu corpo foi devorado pelos bichos, nada sobrou! Quanto a ficar assustada, acho que deve ter sido por conta das confusões que eu vivia aprontando e como ela não te conhece direito, achou que fosse a polícia ou alguém querendo cobrar alguma coisa.

- E agora?

- Sei não meu amigo, por aqui é tudo meio sombrio, fico andando pelas ruas, quase ninguém fala comigo, e os que se aproximam estão iguais ou bem pior do que eu. As balas parecem que ainda estão alojadas em meu corpo, se eu toco nas feridas sinto dor, e percebo um cheiro ruim de carne estragada, mistura de sangue e pólvora... Durmo pouco, aos sobressaltos, pois ao menor descuido vem alguém e tenta me esculachar. Levei um tempo para me situar, nos primeiros momentos não me lembrava de nada, nem sabia direito o meu nome, mas devagar a consciência foi voltando, e eu ali a assistir os bichos a devorar um corpo, que só mais tarde eu percebi que era o meu. Meu compadre, que sensação horrível!

- E depois cara?

- Assim que consegui, saí rapidinho dali, e ao relembrar meu passado, voltei para aquela nossa esquina, e lá estou desde então. Virei o dono daquele encruzo! Tem até um povo que por lá fica em volta de mim, acho que buscando proteção ou companhia... Eu só sei que de lá pra cá, três sujeitos, todos, vítimas do mesmo maldito, por aqui chegaram e aqui estão. Acho que por terem tido o mesmo fim, estão em busca, como eu, de uma desforra. Aquele safado não perde por esperar.

- Tem alguma coisa que eu possa fazer meu irmão? Sei lá! Orar, mandar rezar uma missa, acender uma vela...

- E eu acredito nessas coisas meu compadre? Lá no meu encruzo, tem até um monte de gente que vem acender velas, fazer encomendas, deixam até uns presentes, mas eu não sei nada disso não! Este povo tá tão perdido quanto eu! Uma coisa é certa: a vida continua, isto eu já sei! Mas Deus, se é que Ele existe, passar por lá vai ser um desacerto, a galera é fio desencapado, tudo revoltado na vida, melhor dizendo, na morte, com alguma conta para cobrar ou com muitas pra pagar.

- E como é que você chegou até aqui? Não tem muito tempo que estou morando nesta casa, a antiga foi vendida, pois depois que meus pais morreram, não havia mais motivos para que por lá eu permanecesse.    

- Te vi passando outro dia lá na nossa esquina, logo te reconheci e vim atrás. Quando cheguei por aqui encontrei este portal, e resolvi entrar, bater um papo, matar a saudade dos bons tempos e quem sabe, o compadre não me faz um favor?

- É só falar cara! Se tiver dentro do meu alcance eu corro atrás.

- É que meu neto nasceu semana passada, quem me contou foi o Santarosa, lembra dele? Pois é, também está por lá, tem muitas dívidas, pois em vida andou metido com magia, matança de bichos, enganou muita gente, firmou compromissos com o povo das ruas, e agora é meu braço direito, toma conta do encruzo quando eu saio por aí, o malandro sabe das coisas! Mas como eu ia dizendo, meu neto nasceu e a minha filha cismou que vai batizar com o meu nome. Peça a ela pra fazer isto não! Já chega um, este nome foi um peso em minha vida, coisa ruim, desde o dia que eu nasci, era como se eu tivesse predestinado, marcado com uma etiqueta e desse jeito, com este nome não vai dar boa coisa, não vai prestar! Aproveita e diga que eu estou morando na Argentina, ela nem vai desconfiar, pois sabe que eu já morei por aquelas bandas e tenho gente por lá. Diga que recebeu um telefonema e que eu só não fiz contato direto com ela por conta das minhas encrencas, tem muita gente querendo me cobrar e eu não quero colocá-la em risco. Diga, principalmente, que eu estou bem, e que assim que as coisas esfriarem eu dou notícias. Melhor assim! Não tem necessidade dela ficar sabendo do meu fim.

- Tá certo compadre, eu passo o recado que você pediu. Mas perdoe o velho amigo, mas eu vou pedir por você, Deus é grande, e há de socorrê-lo, curar suas feridas, ampará-lo.

- Porra cara! Para com estas conversas, não perca seu tempo não, pois enquanto eu não cobrar o que aquele filho da puta me deve, não vou sossegar.

Olhei carinhosamente para ele, lembrei-me das coisas que passamos nas ruas, de toda a sua triste história, fechei meus olhos e rezei. Rezei silenciosa e contritamente para que ele fosse orientado, acolhido, resgatado... E ele então me falou:

- Sabe compadre, eu sinto falta de muitas coisas, dentre elas de um bom gole de cachaça, sentir a maldita ardendo em minha garganta, e também de puxar um fumo, serve cigarro! O povo até coloca essas coisas lá no meu encruzo, o Santarosa adora! Mas eu ainda não aprendi, não consigo tirar proveito. Tem uma erva por aí, um cigarro, ou uma boa aguardente? Quem sabe aqui assim materializado eu não consiga?

- Lamento meu compadre! Faz tempo não bebo, e deixei de fumar tem uns quatro anos, meu corpo pediu arrego e eu ainda quero ficar por aqui um tempo.

- Porra cara! Virou careta mesmo! Mas não dá para ser numa próxima vez?

- Dá não cara! Fiz promessa pros santos, fico bem longe dessas coisas, num posso quebrar! 

Uma gargalhada no ar, um cheiro forte, mistura de aguardente com erva da boa, e em mim, a certeza de que ainda vai levar um bom tempo para o amigo de tantas caminhadas encontrar seu rumo, apesar do tudo que eu possa orar por ele.

Nenhum comentário:

Postar um comentário