sábado, 26 de abril de 2014

FANTASMA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS


NALDOVELHO

Manhã bem cedo, escancaro a janela, café quente e encorpado, cama desarrumada, travesseiros pelo chão e eu me ponho a rir sozinho das bobagens de amor que pela vida eu fui capaz de dizer no calor da paixão. Olho para o espelho e a única coisa que consigo perceber é o silêncio de uma superfície fria e opaca, nada de novo nas horas, só a nostalgia no ar.

Enxugo o rosto molhado pela chuva fina que me invade o quarto, e um vento frio me traz assombro e diz que a solidão é coisa pouca, você foi embora faz tempo, mas deixou marcas por toda a casa, seu perfume, algumas peças de roupa e só de sacanagem, uma calcinha e um sutiã.

Já são quase oito horas, lá fora já não chove, e um sol amarelinho esboça um sorriso, e as pessoas que passam não percebem a minha presença nublada na sacada, o meu olhar bisbilhoteiro, a minha necessidade de descobrir histórias, dramas, suas vontades, suas paixões.

Por lá, converso com as plantas para espantar a solidão, troco confidências com azaleia e renda portuguesa ri da minha ingenuidade, e afirma:

- Ela é igual ao teu espelho, nem tudo que diz é digno de crédito, muita coisa ela inventa só para te agradar.

E eu bem sei, que muito do que me é dito, o é apenas pela vontade que ela tem de que eu abra portas, desmanche teias, espante fantasmas, desconstrua minha loucura e apazigue meu coração.

Volto para o quarto e percebo ranhuras na parede, aquela, em frente ao espelho... Tento descobrir por ali significados, talvez versos de um poema que a casa desesperadamente tenta deixar registrados. Meus olhos inquietos buscam palavras, metáforas, coisas que aconteceram muito antes de nos dois. Vida de escritor é uma merda! Passo dias e dias a procura de uma chave, de um tema, de um som.

Caminho pela casa, atravesso a sala, abro a porta de entrada e vou até a varanda. Por lá um cachorro de louça vigia a porta, traz firmeza, espalha suavidade. Perto de um caramanchão no jardim, uma pequena fonte, por incrível que pareça, traz um pouco de lucidez ao ambiente e rosas trepadeiras mostram o quão belas, apesar dos espinhos, elas podem ser. A vida tem prazeres que ninguém deveria ter que abrir mão!

Já são dez horas, mais um café para atiçar o dia, e a lembrança de uma boa cigarrilha ainda atormenta a minha mente, que fervilha de ideias, tantas histórias, mas nenhuma com final feliz. Por estranho que possa parecer, o povo gosta mesmo é de um bom drama!

O livro de contos já está quase pronto, a tapeçaria também! Sua calcinha e o seu sutiã, guardados onde só eu possa ver. O seu cheiro permanece em meus dedos, o seu olhar travesso ainda me assombra e quando ando pela casa costumo sentir seu perfume. Às vezes escuto os seus passos, sua voz, sussurros, indecências... Você não se emenda!

Acho que só vou me livrar do seu fantasma no dia em que eu morrer e aí quem sabe eu possa de novo ter você.

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