NALDOVELHO
(INSPIRADO NO POEMA O
SUICÍDIO DE BELVEDERE BRUNO)
Eu soube que ela tentou se matar!
Que vestiu sua melhor roupa,
batom vermelho em sua boca,
suave e delicioso perfume em seu
corpo,
cabelos soltos, bem escovados,
janelas escancaradas para a
madrugada,
sem medo de se mostrar.
Eu soube, e quem contou,
disse que aquela era a mais bela
imagem
que a vida poderia celebrar.
Um cálice de vinho suave e
inebriante,
um sorriso abusado e provocante,
não mais a futilidade de outrora,
nem a angústia que nos devora.
E ela sabia que não seria fácil
matar a mulher de ontem,
esconder o seu corpo numa mala,
jogar a chave fora, despertar.
Eu soube que ela tentou se matar.
A princípio, não acreditei,
mas quando a vi pelas ruas,
não tive dúvidas, ela estava
morta!
Naquele momento percebi,
que havia outra em seu lugar
um jeito todo peculiar de
caminhar.
Vez por outra, quando passo por
ela,
ainda percebo uma sombra lá no
fundo.
É a outra que chora e pede perdão
pelas escolhas que destruíram
suas ilusões.
Já de noitinha, perto
das vinte e duas, uma lua maravilhosamente cheia invadiu meu quarto, mês de
março, princípio de outono, Chet Baker a desfiar desenganos e eu na tentativa
de me organizar em meio aos meus próprios escombros, nem poderia supor o quê as
próximas horas iriam me reservar. De repente, um vulto de mulher envolto em
névoas começou a gritar desesperadamente de dentro do meu espelho:
- Ela quer me matar!
E repetia:
- Mas, ela quer me
matar!
O quanto mais ela
gritava, mais densa a névoa se tornava, mais difícil era perceber seus traços,
seu rosto, seu corpo. Tentei acalmá-la, rezei repetidas vezes, na intenção de
produzir com isto um mantra que pudesse criar um ambiente de energias
benfazejas e assim apaziguar seu espírito...
Pouco a pouco o
quarto foi tomado por uma brisa suave, um perfume envolvente, e ela apesar do
choro ainda expressivo, não mais gritava e se aquietou.
- Moça, acalme-se, dê
o seu recado, mas faça-o com suavidade, de forma a que eu possa entender e quem
sabe ajudá-la.
Assim como por
encanto, percebi que uma luz quente e aconchegante, vinda nem sei de onde, era
projetada para dentro do espelho e a imagem antes enevoada, como num passe de mágica
começou a se delinear, seu rosto a se revelar, e eu pude então perceber:
mulher, cerca de quarenta anos, cabelos um tanto ou quanto desgrenhados, fios
esbranquiçados misturados aos castanhos claros queimados, mal tratados, olhos
esverdeados, bonita ainda, é bem verdade, apesar das marcas deixadas pelo
desespero, pelas lágrimas convulsivas, pelos gritos de dor.
Logo reconheci, a
amiga que faz tempo não via. E eu sabia que ela tentara se matar! Que vestira
sua melhor roupa, batom vermelho em sua boca, suave e delicioso perfume em seu
corpo, cabelos soltos, bem escovados, janelas escancaradas para a madrugada,
sem ter medo de se mostrar.
Eu soube, e quem
contou, disse que aquela era a mais estranha e bela imagem que a vida poderia
celebrar.
Vi então em imagens
nítidas, como se uma tela ali houvesse, a mesma mulher transformada em outra e,
em sua mão um cálice de vinho suave e inebriante, em seu rosto um sorriso
abusado e provocante, não mais a fragilidade de outrora, nem a angústia que nos
devora.
E novamente a mulher
presa em meu espelho, dizia:
- Ela quer me matar!
Queimou todas as minhas roupas, jogou fora os meus pertences, colocou na
lixeira do prédio minhas bonecas, minhas preciosas bonecas, rasgou meu diário e
gritou como uma louca, que eu estava morta, que ela agora era outra!
Naquele momento,
percebi claramente o quanto aquela angustiada mulher lutava e que ela sabia que
não seria fácil vencer a mulher que hoje se revelava e que impiedosamente
tentava sufocá-la, matá-la, esconder o seu corpo numa mala, jogar a chave fora!
Eu soube que ela
tentara se matar. A princípio, não acreditei, mas quando vi aquelas imagens que
revelavam a fragilidade da mulher de outrora e a determinação da mulher que
hoje, não tive dúvidas, ela havia conseguido. A mulher de antes estava morta, e
seu espectro preso dentro do meu espelho, lutando para se libertar.
Desde aquele dia,
toda a vez que Chet Baker invade meu quarto, eu a percebo lá no fundo do meu
espelho, e ela chora, e pede perdão pelas escolhas que destruíram suas ilusões.
E aí, pacientemente
eu a trago para fora, materializo-a em meu quarto, e carinhosamente tento
convencê-la a assumir que a mulher de outrora deve permanecer morta e que assim
sendo ela estaria livre para viver uma nova vida junto daquela outra que
caminhava pelas ruas como se lhe estivesse faltando um pedaço, que sem saber
explicar direito a inquietude, sente falta de suas bonecas, mas não quer abrir
mão de sua nova roupagem, nem das possibilidades de escolhas, ainda que
erradas, pois esta era uma viagem da qual ela não iria abrir mão.
E eu a lhe dizer:
- Vá! Você esta
livre, seja feliz e traga paz ao seu coração! Na vida, muitas vezes é preciso
se desconstruir por inteira, remover todo o entulho e se reerguer num novo ser,
e você só vai poder se sentir plena quando se integrar a sua nova história, doa
o que doer.
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