sábado, 26 de abril de 2014

A OUTRA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS


NALDOVELHO

(INSPIRADO NO POEMA O SUICÍDIO DE BELVEDERE BRUNO)

Eu soube que ela tentou se matar!
Que vestiu sua melhor roupa,
batom vermelho em sua boca,
suave e delicioso perfume em seu corpo,
cabelos soltos, bem escovados,
janelas escancaradas para a madrugada,
sem medo de se mostrar.

Eu soube, e quem contou,
disse que aquela era a mais bela imagem
que a vida poderia celebrar.

Um cálice de vinho suave e inebriante,
um sorriso abusado e provocante,
não mais a futilidade de outrora,
nem a angústia que nos devora.

E ela sabia que não seria fácil
matar a mulher de ontem,
esconder o seu corpo numa mala,
jogar a chave fora, despertar.

Eu soube que ela tentou se matar.
A princípio, não acreditei,
mas quando a vi pelas ruas,
não tive dúvidas, ela estava morta!
Naquele momento percebi,
que havia outra em seu lugar
e que esta tinha um brilho especial nos olhos,
um jeito todo peculiar de caminhar.

Vez por outra, quando passo por ela,
ainda percebo uma sombra lá no fundo.
É a outra que chora e pede perdão
pelas escolhas que destruíram suas ilusões.


Já de noitinha, perto das vinte e duas, uma lua maravilhosamente cheia invadiu meu quarto, mês de março, princípio de outono, Chet Baker a desfiar desenganos e eu na tentativa de me organizar em meio aos meus próprios escombros, nem poderia supor o quê as próximas horas iriam me reservar. De repente, um vulto de mulher envolto em névoas começou a gritar desesperadamente de dentro do meu espelho:

- Ela quer me matar!
E repetia:

- Mas, ela quer me matar!

O quanto mais ela gritava, mais densa a névoa se tornava, mais difícil era perceber seus traços, seu rosto, seu corpo. Tentei acalmá-la, rezei repetidas vezes, na intenção de produzir com isto um mantra que pudesse criar um ambiente de energias benfazejas e assim apaziguar seu espírito...

Pouco a pouco o quarto foi tomado por uma brisa suave, um perfume envolvente, e ela apesar do choro ainda expressivo, não mais gritava e se aquietou.

- Moça, acalme-se, dê o seu recado, mas faça-o com suavidade, de forma a que eu possa entender e quem sabe ajudá-la.

Assim como por encanto, percebi que uma luz quente e aconchegante, vinda nem sei de onde, era projetada para dentro do espelho e a imagem antes enevoada, como num passe de mágica começou a se delinear, seu rosto a se revelar, e eu pude então perceber: mulher, cerca de quarenta anos, cabelos um tanto ou quanto desgrenhados, fios esbranquiçados misturados aos castanhos claros queimados, mal tratados, olhos esverdeados, bonita ainda, é bem verdade, apesar das marcas deixadas pelo desespero, pelas lágrimas convulsivas, pelos gritos de dor.

Logo reconheci, a amiga que faz tempo não via. E eu sabia que ela tentara se matar! Que vestira sua melhor roupa, batom vermelho em sua boca, suave e delicioso perfume em seu corpo, cabelos soltos, bem escovados, janelas escancaradas para a madrugada, sem ter medo de se mostrar.

Eu soube, e quem contou, disse que aquela era a mais estranha e bela imagem que a vida poderia celebrar.

Vi então em imagens nítidas, como se uma tela ali houvesse, a mesma mulher transformada em outra e, em sua mão um cálice de vinho suave e inebriante, em seu rosto um sorriso abusado e provocante, não mais a fragilidade de outrora, nem a angústia que nos devora.

E novamente a mulher presa em meu espelho, dizia:

- Ela quer me matar! Queimou todas as minhas roupas, jogou fora os meus pertences, colocou na lixeira do prédio minhas bonecas, minhas preciosas bonecas, rasgou meu diário e gritou como uma louca, que eu estava morta, que ela agora era outra!

Naquele momento, percebi claramente o quanto aquela angustiada mulher lutava e que ela sabia que não seria fácil vencer a mulher que hoje se revelava e que impiedosamente tentava sufocá-la, matá-la, esconder o seu corpo numa mala, jogar a chave fora!

Eu soube que ela tentara se matar. A princípio, não acreditei, mas quando vi aquelas imagens que revelavam a fragilidade da mulher de outrora e a determinação da mulher que hoje, não tive dúvidas, ela havia conseguido. A mulher de antes estava morta, e seu espectro preso dentro do meu espelho, lutando para se libertar.

Desde aquele dia, toda a vez que Chet Baker invade meu quarto, eu a percebo lá no fundo do meu espelho, e ela chora, e pede perdão pelas escolhas que destruíram suas ilusões.

E aí, pacientemente eu a trago para fora, materializo-a em meu quarto, e carinhosamente tento convencê-la a assumir que a mulher de outrora deve permanecer morta e que assim sendo ela estaria livre para viver uma nova vida junto daquela outra que caminhava pelas ruas como se lhe estivesse faltando um pedaço, que sem saber explicar direito a inquietude, sente falta de suas bonecas, mas não quer abrir mão de sua nova roupagem, nem das possibilidades de escolhas, ainda que erradas, pois esta era uma viagem da qual ela não iria abrir mão.

E eu a lhe dizer:

- Vá! Você esta livre, seja feliz e traga paz ao seu coração! Na vida, muitas vezes é preciso se desconstruir por inteira, remover todo o entulho e se reerguer num novo ser, e você só vai poder se sentir plena quando se integrar a sua nova história, doa o que doer.



Nenhum comentário:

Postar um comentário