Numa mesinha de canto numa parede
acortinada que mal esconde uma luminosa janela: um elegante abajur e um livro
de contos, Hermann Hesse. Ao lado da mesinha, protegida do vento, uma aconchegante
cadeira de balanço, lugar preferido da velha senhora.
Numa jarra de cristal em cima da
mesa, no centro da sala: monsenhor branco. Na parede à esquerda de quem entra
pela porta da frente, acima de uma arca, um lindo quadro: paisagem campestre onde
um menino e o seu cão pastoreiam suas ovelhas. Do lado direito, numa imponente
cristaleira: taças, copos, louças, delicadezas, e em especial, um aparelho de
chá de porcelana chinesa, herança de um antepassado, coisa do início do século
passado, quase cem anos atrás. Na parede oposta à entrada da sala, bem ao lado
de uma porta em imbuia e vidro que dá acesso ao corredor: uma rádio vitrola,
coisa muito antiga, marca Telefunken.
Vou até a janela e abro um pouco
mais a cortina, e lá fora vejo num bem cuidado e florido jardim: roseiras,
azaleias, lírios, crisântemos, bromélias e jasmins, todos em animada conversa
com as borboletas, as samambaias, e a passarinhada, como sempre, em animada
algazarra, principalmente os colibris, ignoram tudo o que acontece aqui dentro.
Volto meus olhos para o interior
da sala e acendo a luz de um belíssimo lustre de cristal, que todos os dias ao
entardecer, abençoa a velha senhora em seu costumeiro chá, ao som, quase
sempre, de música clássica: Chopin, Beethoven, Bach e muitas, muitas valsas
vienenses. É bem verdade que não raro ela gosta de apreciar um bom jazz, Billie
Holiday é sua preferida, Bill Evans também! Mas quando isto acontece, não é chá
que ela toma!
Numa poltrona, estrategicamente
colocada ao lado da arca, um gato persa, lambe as patas e espiona a velha
senhora que parece dormir docemente em sua cadeira, sonhando que esta valsando,
ou então em pecado numa boate esfumaçada em Nova York. A velha senhora consegue
trafegar com muita intimidade entre a aristocracia dos salões de outrora e os
ambientes sombrios dos guetos de jazz. Dá até gosto de se ver.
Ninguém sabe ao certo o seu nome
inteiro, nem desde quando ela está por aqui. Eu a conheço apenas como Dona
Santa e vez por outra peço sua ajuda, pois ela ótima professora de português,
ensina com esmero e trabalha com maestria e muita sensibilidade as
possibilidades dos significados da palavra e por poesia, também, todo o seu
brilho. Foi ela quem me ensinou a escrever poemas, e ainda hoje costuma revisar
meus textos e não raro me dá uns bons puxões de orelha. Velha aristocrata que é,
e que carinhosamente me chama de bardo.
Outro dia, ao chegar à sua casa,
percebi que alguma coisa estava diferente, pois apesar de sempre bem humorada,
ela estava muito sorridente, até um pouco eufórica, por assim dizer. Fiquei
meio curioso e logo lhe perguntei o porquê de tanta alegria e ela de pronto
respondeu:
- Pegue aquela carta em cima da
arca, vou lê-la para você, meu filho!
E assim, foi logo se aconchegar
em sua cadeira de balanço e pediu que eu lhe pegasse uma pequena manta que
estava na poltrona e começou a ler:
- Saudosa santinha! Escrevo-lhe
estas emocionadas linhas para comunicar que em breve estarei no Rio de Janeiro,
e que se for do seu gosto, anseio por reencontrá-la, pois apesar da distância e
dos tantos anos passados, nunca a esqueci, e hoje livre de todos os
impedimentos, preciso, e tomara Deus que seja recíproco, colocar nossos
assuntos pendentes em dia, resolvê-los e quem sabe, possamos ficar juntos até o
fim dos dias. Assinado: Alceu.
Uma curta e significativa carta,
e pela reação da velha senhora, um sonho a muito acalentado, uma dor escondida
faz tempo, uma esperança que naquelas palavras se renovava.
Ela se levantou, foi até a arca e
lá pegou uma pequena caixa, onde existiam, retratos, bilhetes, miudezas, coisas
de sua intimidade que a ninguém era permitido ver, e disse:
- Tenho-o como um filho, e
gostaria de dividir este momento com você.
Pegou na caixinha um retrato de
um homem moreno e sorridente, já maduro, com seus cinquenta e poucos anos, e
atrás do retrato uma pequena dedicatória, onde se lia: Eu sei que vou te amar,
até o fim da minha vida!
Hoje finalmente era chegado o
dia, e eu sozinho naquela sala, a espera do Alceu, e ele prometeu que vinha e
nada era mais importante para o poeta do que recebê-lo, dar-lhe contas da velha
senhora e por respeito àquele homem que eu não conhecia, mas que antecipava ser
um cavalheiro, por tudo que nessa semana Dona Santa havia me contado; ajudá-lo
e que sabe também ser ajudado.
Ela havia me dito que haviam sido
grandes amantes, e pelo visto, o amor entre eles fora tão profundo que no
semblante daquela mulher podia se sentir claramente a nostalgia, a saudade e a
poesia que costumeiramente nos invade, quando lá traz se deixa uma história mal
resolvida, uma perda sentida, uma dor sem ódio, sem mágoa, apenas a frustração
de não ter sido vivida plenamente a paixão, um vazio de não poder se ter.
Chego mais perto da cadeira, e cubro
carinhosamente o corpo de Dona Santa, vou até o telefone, e ligo para todos que
posso, pois diante do desfecho daquela história eu não sei mais o que fazer.
Quando de repente, a campainha da
porta, insistentemente, toca, e eu com lágrimas nos olhos atendo, e estranho: não percebo ninguém, só um vento frio que invade a sala, um perfume suave que toma
conta do ambiente e uma incrível sensação de euforia pelo ar.
Volto para perto de Dona Santa e
percebo que ela está de novo descoberta, cubro-a novamente, mas não consigo
evitar um arrepio pelo corpo. Dona Santa traz em seus lábios entreabertos um
sorriso doce, cheio de significados, sem dor ou nostalgia, finalmente feliz e em paz.
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