quinta-feira, 24 de abril de 2014

DONA SANTA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS


Numa mesinha de canto numa parede acortinada que mal esconde uma luminosa janela: um elegante abajur e um livro de contos, Hermann Hesse. Ao lado da mesinha, protegida do vento, uma aconchegante cadeira de balanço, lugar preferido da velha senhora.

Numa jarra de cristal em cima da mesa, no centro da sala: monsenhor branco. Na parede à esquerda de quem entra pela porta da frente, acima de uma arca, um lindo quadro: paisagem campestre onde um menino e o seu cão pastoreiam suas ovelhas. Do lado direito, numa imponente cristaleira: taças, copos, louças, delicadezas, e em especial, um aparelho de chá de porcelana chinesa, herança de um antepassado, coisa do início do século passado, quase cem anos atrás. Na parede oposta à entrada da sala, bem ao lado de uma porta em imbuia e vidro que dá acesso ao corredor: uma rádio vitrola, coisa muito antiga, marca Telefunken.

Vou até a janela e abro um pouco mais a cortina, e lá fora vejo num bem cuidado e florido jardim: roseiras, azaleias, lírios, crisântemos, bromélias e jasmins, todos em animada conversa com as borboletas, as samambaias, e a passarinhada, como sempre, em animada algazarra, principalmente os colibris, ignoram tudo o que acontece aqui dentro.

Volto meus olhos para o interior da sala e acendo a luz de um belíssimo lustre de cristal, que todos os dias ao entardecer, abençoa a velha senhora em seu costumeiro chá, ao som, quase sempre, de música clássica: Chopin, Beethoven, Bach e muitas, muitas valsas vienenses. É bem verdade que não raro ela gosta de apreciar um bom jazz, Billie Holiday é sua preferida, Bill Evans também! Mas quando isto acontece, não é chá que ela toma! 

Numa poltrona, estrategicamente colocada ao lado da arca, um gato persa, lambe as patas e espiona a velha senhora que parece dormir docemente em sua cadeira, sonhando que esta valsando, ou então em pecado numa boate esfumaçada em Nova York. A velha senhora consegue trafegar com muita intimidade entre a aristocracia dos salões de outrora e os ambientes sombrios dos guetos de jazz. Dá até gosto de se ver.

Ninguém sabe ao certo o seu nome inteiro, nem desde quando ela está por aqui. Eu a conheço apenas como Dona Santa e vez por outra peço sua ajuda, pois ela ótima professora de português, ensina com esmero e trabalha com maestria e muita sensibilidade as possibilidades dos significados da palavra e por poesia, também, todo o seu brilho. Foi ela quem me ensinou a escrever poemas, e ainda hoje costuma revisar meus textos e não raro me dá uns bons puxões de orelha. Velha aristocrata que é, e que carinhosamente me chama de bardo.

Outro dia, ao chegar à sua casa, percebi que alguma coisa estava diferente, pois apesar de sempre bem humorada, ela estava muito sorridente, até um pouco eufórica, por assim dizer. Fiquei meio curioso e logo lhe perguntei o porquê de tanta alegria e ela de pronto respondeu:

- Pegue aquela carta em cima da arca, vou lê-la para você, meu filho!

E assim, foi logo se aconchegar em sua cadeira de balanço e pediu que eu lhe pegasse uma pequena manta que estava na poltrona e começou a ler:

- Saudosa santinha! Escrevo-lhe estas emocionadas linhas para comunicar que em breve estarei no Rio de Janeiro, e que se for do seu gosto, anseio por reencontrá-la, pois apesar da distância e dos tantos anos passados, nunca a esqueci, e hoje livre de todos os impedimentos, preciso, e tomara Deus que seja recíproco, colocar nossos assuntos pendentes em dia, resolvê-los e quem sabe, possamos ficar juntos até o fim dos dias. Assinado: Alceu.

Uma curta e significativa carta, e pela reação da velha senhora, um sonho a muito acalentado, uma dor escondida faz tempo, uma esperança que naquelas palavras se renovava.

Ela se levantou, foi até a arca e lá pegou uma pequena caixa, onde existiam, retratos, bilhetes, miudezas, coisas de sua intimidade que a ninguém era permitido ver, e disse:

- Tenho-o como um filho, e gostaria de dividir este momento com você.

Pegou na caixinha um retrato de um homem moreno e sorridente, já maduro, com seus cinquenta e poucos anos, e atrás do retrato uma pequena dedicatória, onde se lia: Eu sei que vou te amar, até o fim da minha vida!

Hoje finalmente era chegado o dia, e eu sozinho naquela sala, a espera do Alceu, e ele prometeu que vinha e nada era mais importante para o poeta do que recebê-lo, dar-lhe contas da velha senhora e por respeito àquele homem que eu não conhecia, mas que antecipava ser um cavalheiro, por tudo que nessa semana Dona Santa havia me contado; ajudá-lo e que sabe também ser ajudado.

Ela havia me dito que haviam sido grandes amantes, e pelo visto, o amor entre eles fora tão profundo que no semblante daquela mulher podia se sentir claramente a nostalgia, a saudade e a poesia que costumeiramente nos invade, quando lá traz se deixa uma história mal resolvida, uma perda sentida, uma dor sem ódio, sem mágoa, apenas a frustração de não ter sido vivida plenamente a paixão, um vazio de não poder se ter.

Chego mais perto da cadeira, e cubro carinhosamente o corpo de Dona Santa, vou até o telefone, e ligo para todos que posso, pois diante do desfecho daquela história eu não sei mais o que fazer.

Quando de repente, a campainha da porta, insistentemente, toca, e eu com lágrimas nos olhos atendo, e estranho: não percebo ninguém, só um vento frio que invade a sala, um perfume suave que toma conta do ambiente e uma incrível sensação de euforia pelo ar.

Volto para perto de Dona Santa e percebo que ela está de novo descoberta, cubro-a novamente, mas não consigo evitar um arrepio pelo corpo. Dona Santa traz em seus lábios entreabertos um sorriso doce, cheio de significados, sem dor ou nostalgia, finalmente feliz e em paz.
   

Nenhum comentário:

Postar um comentário