E por aquele espelho surgiam figuras
estranhas, imagens, às vezes até de lugares, vultos de pessoas, alguns mais ou menos
definidos, outros tão claros como se verdadeiramente presentes, palpáveis, e assim
então, sem que ao menos fossem convidados, materializavam-se e tomavam conta do
ambiente. A maioria deles, conhecidos que volta e meia povoam meus sonhos, ou
então, velhos camaradas que por um tempo caminharam lado a lado comigo... O
interessante é que todos se mantinham jovens; só eu envelhecera, só eu jazia soterrado
sob as agruras do tempo. Algumas figuras, desconhecidas ainda, como se por aqui
estivessem, só de passagem, portadoras de alguma mensagem, ou apenas curiosas
em conhecer o lugar. Aquele espelho era como um portal, uma maravilhosa e
inquietante passagem, um caminho de ir e de vir. Só que existiam também
aqueles, os compadres!
E assim foi, numa terça-feira,
noite quente de março, de um ano qualquer, nem faz muito tempo, quase
meia-noite, e um vulto, aparentemente familiar saltou do espelho, chegou para
uma conversa, como se tivesse algo a contar e amistosamente falou:
- E aí meu compadre, quanta saudade! Acho que já faz uns quatro
anos... Pois é meu amigo, tantas esquinas eu dobrei, que um dia não pude mais
voltar, meu tempo acabou; um acerto de contas, um cabra que comigo esbarrou,
não gostou e de repente, perdi!
De pronto reconheci a voz! Amigo
de muito tempo, companheiro das ruas, ombro a ombro pelas madrugadas desertas,
e no muito que aprontávamos por aí. Fiz força para me recompor, pois a imagem
que diante de mim se materializava não era nem um pouco agradável, mas prontamente
respondi:
- Porra Magrelo, essa história de novo? Lembra-se de quando por
aqui correu a notícia de que você havia morrido? Willian até me contou que foi
à sua missa de sétimo dia e que a sua tia, coitada, desconsolada, chorava e
dizia o quanto você era um cara boa praça. E depois você aparece no portão da
minha casa, quase me mata de susto, vivinho da silva!
- Pois é meu compadre! Todo safado depois de morto vira bonzinho,
principalmente no coração de uma tia, de uma mãe, ou de um amigo fiel. Só que
desta feita é verdade, tanto fiz que um dia veio a cobrança e sinceramente até
agora eu estou sem entender o porquê! O
cabra nem era meu desafeto, por quase nada, meteu o dedo e deixou quatro balas alojadas
em meu peito, não deu nem para sentir dor.
- Magrelo! Num tem nem muito tempo, liguei para sua filha, para
saber de você e ela meio assustada, sem saber direito o que dizer... Ela já
sabia?
- Não meu amigo! Ela de nada sabia e ainda não sabe. O cara fez o
serviço completo, foi lá pras bandas do Pantanal. Depois dos tiros, ele me
jogou num braço de rio, era tempo de cheia, área alagada, rapidinho meu corpo
foi devorado pelos bichos, nada sobrou! Quanto a ficar assustada, acho que deve
ter sido por conta das confusões que eu vivia aprontando e como ela não te
conhece direito, achou que fosse a polícia ou alguém querendo cobrar alguma
coisa.
- E agora?
- Sei não meu amigo, por aqui é tudo meio sombrio, fico andando
pelas ruas, quase ninguém fala comigo, e os que se aproximam estão iguais ou
bem pior do que eu. As balas parecem que ainda estão alojadas em meu corpo, se
eu toco nas feridas sinto dor, e percebo um cheiro ruim de carne estragada, mistura
de sangue e pólvora... Durmo pouco, aos sobressaltos, pois ao menor descuido
vem alguém e tenta me esculachar. Levei um tempo para me situar, nos primeiros
momentos não me lembrava de nada, nem sabia direito o meu nome, mas devagar a
consciência foi voltando, e eu ali a assistir os bichos a devorar um corpo, que
só mais tarde eu percebi que era o meu. Meu compadre, que sensação horrível!
- E depois cara?
- Assim que consegui, saí rapidinho dali, e ao relembrar meu
passado, voltei para aquela nossa esquina, e lá estou desde então. Virei o dono
daquele encruzo! Tem até um povo que por lá fica em volta de mim, acho que
buscando proteção ou companhia... Eu só sei que de lá pra cá, três sujeitos,
todos, vítimas do mesmo maldito, por aqui chegaram e aqui estão. Acho que por
terem tido o mesmo fim, estão em busca, como eu, de uma desforra. Aquele safado
não perde por esperar.
- Tem alguma coisa que eu possa fazer meu irmão? Sei lá! Orar,
mandar rezar uma missa, acender uma vela...
- E eu acredito nessas coisas meu compadre? Lá no meu encruzo, tem
até um monte de gente que vem acender velas, fazer encomendas, deixam até uns
presentes, mas eu não sei nada disso não! Este povo tá tão perdido quanto eu!
Uma coisa é certa: a vida continua, isto eu já sei! Mas Deus, se é que Ele
existe, passar por lá vai ser um desacerto, a galera é fio desencapado, tudo
revoltado na vida, melhor dizendo, na morte, com alguma conta para cobrar ou
com muitas pra pagar.
- E como é que você chegou até aqui? Não tem muito tempo que estou
morando nesta casa, a antiga foi vendida, pois depois que meus pais morreram,
não havia mais motivos para que por lá eu permanecesse.
- Te vi passando outro dia lá na nossa esquina, logo te reconheci
e vim atrás. Quando cheguei por aqui encontrei este portal, e resolvi entrar,
bater um papo, matar a saudade dos bons tempos e quem sabe, o compadre não me
faz um favor?
- É só falar cara! Se tiver dentro do meu alcance eu corro atrás.
- É que meu neto nasceu semana passada, quem me contou foi o Santarosa,
lembra dele? Pois é, também está por lá, tem muitas dívidas, pois em vida andou
metido com magia, matança de bichos, enganou muita gente, firmou compromissos
com o povo das ruas, e agora é meu braço direito, toma conta do encruzo quando
eu saio por aí, o malandro sabe das coisas! Mas como eu ia dizendo, meu neto
nasceu e a minha filha cismou que vai batizar com o meu nome. Peça a ela pra
fazer isto não! Já chega um, este nome foi um peso em minha vida, coisa ruim,
desde o dia que eu nasci, era como se eu tivesse predestinado, marcado com uma
etiqueta e desse jeito, com este nome não vai dar boa coisa, não vai prestar!
Aproveita e diga que eu estou morando na Argentina, ela nem vai desconfiar,
pois sabe que eu já morei por aquelas bandas e tenho gente por lá. Diga que
recebeu um telefonema e que eu só não fiz contato direto com ela por conta das
minhas encrencas, tem muita gente querendo me cobrar e eu não quero colocá-la
em risco. Diga, principalmente, que eu estou bem, e que assim que as coisas
esfriarem eu dou notícias. Melhor assim! Não tem necessidade dela ficar sabendo
do meu fim.
- Tá certo compadre, eu passo o recado que você pediu. Mas perdoe
o velho amigo, mas eu vou pedir por você, Deus é grande, e há de socorrê-lo,
curar suas feridas, ampará-lo.
- Porra cara! Para com estas conversas, não perca seu tempo não,
pois enquanto eu não cobrar o que aquele filho da puta me deve, não vou
sossegar.
Olhei carinhosamente para ele,
lembrei-me das coisas que passamos nas ruas, de toda a sua triste história,
fechei meus olhos e rezei. Rezei silenciosa e contritamente para que ele fosse
orientado, acolhido, resgatado... E ele então me falou:
- Sabe compadre, eu sinto falta de muitas coisas, dentre elas de
um bom gole de cachaça, sentir a maldita ardendo em minha garganta, e também de
puxar um fumo, serve cigarro! O povo até coloca essas coisas lá no meu encruzo,
o Santarosa adora! Mas eu ainda não aprendi, não consigo tirar proveito. Tem uma
erva por aí, um cigarro, ou uma boa aguardente? Quem sabe aqui assim materializado
eu não consiga?
- Lamento meu compadre! Faz tempo não bebo, e deixei de fumar tem
uns quatro anos, meu corpo pediu arrego e eu ainda quero ficar por aqui um
tempo.
- Porra cara! Virou careta mesmo! Mas não dá para ser numa próxima
vez?
- Dá não cara! Fiz promessa pros santos, fico bem longe dessas
coisas, num posso quebrar!
Uma gargalhada no ar, um cheiro
forte, mistura de aguardente com erva da boa, e em mim, a certeza de que ainda
vai levar um bom tempo para o amigo de tantas caminhadas encontrar seu rumo,
apesar do tudo que eu possa orar por ele.