sexta-feira, 24 de junho de 2016

EM CADA PÁGINA DESTE LIVRO

    NALDOVELHO

    Em cada página deste livro
    eu busco sentir o arrepio,
    o assombro, o encantamento,
    as possibilidades escondidas
    nas dobras inevitáveis do tempo,
    enredos entremeados de ternura,
    amontoados de histórias sagradas,
    doces e preciosas recordações.

    Em cada página deste livro
    eu busco uma casa assobradada,
    um quintal ajardinado,
    samambaias selvagens e avencas,
    roseiras trepadeiras e espinhentas,
    e na varanda uma espreguiçadeira,
    um cachorro de louça perto da porta,
    guardião silencioso daquele lugar.

    Em cada página deste livro
    eu busco um beijo molhado,
    um sorriso, um carinho ofertado,
    e no fundo do quintal uma goiabeira,
    e em seu tronco um coração trespassado
    por uma flecha de amor derradeiro,
    e nossos nomes ali gravados,
    vestígios de nossa paixão.

    Em cada página deste livro
    eu busco um cheiro de alfazema,
    um álbum cheio de retratos,
    a sensação de ouvir os seus passos,
    um caderno repleto de rabiscos,
    manuscritos de poemas,
    palavras molhadas de delicadeza,
    coisas que com o tempo eu esqueci.

CAMINHOS

    NALDOVELHO

    Imaginem um caminho iluminado
    e por ele todo o tipo de gente.
    Alguns, leves e alegres como crianças;
    outros, doídos de tanto carregar esperanças;
    a maioria destes carrega em suas bagagens
    vestígios de outras estradas,
    sinais de gente calejada,
    cortes, cicatrizes, medalhas,
    por muita lida e estiagens.

    Imaginem agora que de tempos em tempos,
    casas de acolhimento e passagem
    e que por lá um prato de comida quente,
    o vinho do refazimento e do amor,
    o carinho daqueles que sabem
    o que é preciso para se continuar.

    Imaginem agora um caminho sombrio,
    de gente que carrega nos ombros a clausura,
    o frio, a solidão e a loucura,
    a sensação de estarem perdidos faz tempo,
    a dor da culpa e do arrependimento.

    Imaginem que por lá também existem
    casas de acolhimento e passagem,
    um prato de comida quente,
    o vinho do refazimento e da ternura,
    remédios que possam aplacar toda a dor.

    Imaginem agora o porquê de sermos iguais,
    mas no fundo, no fundo, tão diferentes!

    Imaginem agora um caminho e me diga:
    qual caminho você quer percorrer?


PÁSSARO DE PENAS DOURADAS

    NALDOVELHO

    Pássaro de penas douradas
    pousou no parapeito de minha janela,
    sem pedir licença invadiu meu quarto,
    iluminou livros, discos, cristais, retratos,
    iluminou também minhas guias, meus santos
    e cada canto, todos os cantos, sombrios ou não.

    Como se fosse um anjo
    ele tomou conta do meu amanhecer
    e me mostrou um canto de delicadezas,
    coisa trazida de um mundo de sonhos,
    verdades que se colocadas em cima de uma mesa
    trariam o arrepio, a ternura, a paixão.

    Como se eu fosse um poeta,
    escrevi versos de exaltação ao universo,
    cantigas com a leveza de uma pena,
    onde imagens povoadas de luz
    revelavam um tempo de amor
    a ser colhido num porvir.

    Mas num misto de assombro e tristeza,
    escutei notícias dos longes,
    e caminhei nervoso pela casa
    a buscar em todos os cômodos
    palavras que me devolvessem a crença
    em Deus, na magia, nos homens...

    Rasguei, então, todos aqueles poemas,
    fui até o parapeito da janela
    e percebi que anoitecia em minha cidade,
    e que pássaro dourado tinha ido embora,
    assustado com a violência dos homens,
    não estava mais ali!

  

segunda-feira, 13 de junho de 2016

O ANJO DA MORTE

    NALDOVELHO

    Eu vi um anjo pousado
    naquela avenida grande e tranquila
    perto do centro daquela cidade,
    suas asas eram avermelhadas
    de tanto que estavam sujas de sangue.

    E o anjo entristecido chorava
    e as lágrimas que eu via
    ao tocar o chão explodiam
    e exalavam um cheiro acre
    que deixava o ar
    quase impossível de se respirar.

    E o anjo então vagava
    em meio aos escombros,
    e a cada corpo que encontrava
    acariciava consternado o seu dorso,
    até que aquela alma libertada voasse
    em direção ao próximo porto,
    pois ali ela encontraria um novo rumo,
    a cura para as suas feridas, a paz.

    Eu vi um anjo ensanguentado
    atarefado em sua dolorosa lida,
    e ele chorava lágrimas ácidas,
    pois não conseguia entender
    o porquê de tanto ódio nos corações.

    Mas vi também uma outra alma,
    triste e atormentada pela escuridão,
    e desta o anjo não se aproximaria,
    enquanto ela não percebesse o desatino,
    e implorasse pelo perdão,
    e enquanto isso o que lhe restava
    era singrar mares tenebrosos,
    até que lapidado pela dor
    viesse a encontrar sua redenção.

    Pobre anjo de asas ensanguentadas,
    quanta dor carrega em seus ombros...
    Seria ele também uma alma
    em busca da sua redenção?



sexta-feira, 10 de junho de 2016

RECEITA PARA CURAR PAIXÃO MAL RESOLVIDA

    NALDOVELHO

    Quando chegar a noite,
    pegue um bom punhado de poeira de estrelas,
    partículas de luz colhidas em noite de lua cheia,
    junte cinco pequenos galhos floridos de alfazema,
    um bom punhado de agrião
    e pétalas fresquinhas de crisântemos.
    Se for do gosto adicione também camomila amarela,
    coloque tudo num pote de cristal,
    tempere agora com preciosas gotas de orvalho
    e três generosos cálices de vinho moscatel.

    Macere tudo lentamente, até ter por lá
    uma pasta gosmenta e reluzente;
    deixe maturar no parapeito da janela
    até que pela secura do tempo
    a pasta possa ser triturada.
    Misture-a então, como se açúcar fosse,
    às frutas cristalizadas;
    regue com duas colheres de mel para cortar o amargor.

    Excelente remédio para curar paixão mal resolvida,
    daquelas que deixam o sujeito amuado,
    e fazem o coração bater descompassado
    a ponto de lhe tirar a respiração.

    Use a vontade,
    o mel servirá como antídoto ao amargor
    próprio do vazio que fica pela perda do amor.
    E o crisântemo nos abre sempre
    novas possibilidades.

FIAPOS DE LUZ

    NALDOVELHO

    Existem fiapos de loucura
    em cada rasgo na textura,
    em cada dose de absinto,
    em estar preso num labirinto,
    em cada perda não chorada,
    em cada dor cristalizada,
    em caminhar por noites escuras
    e na solidão que me leva a clausura.

    Existe um rasgo na textura
    e por ele eu percebo a loucura
    da dor que tenta destruir os meus planos,
    da amargura que ameaça os meus sonhos,
    de viver embaraçado num amontoado de fios,
    da sede, da fome e do frio,
    do sangue que escorre quando brota a paixão
    na impossibilidade de dar ouvidos à razão.

    Mas existe também o carinho e a ternura
    nos dias e noites de inquietude e procura,
    no inexorável amanhecer a cada dia,
    na passarinhada a me ensinar a magia
    do perfume inebriante do jasmim,
    nas asas que hoje existem dentro de mim,
    e em tudo aquilo que eu semeio por amor,
    pois a cada verso menor será a minha dor.

    Eu percebo fiapos de luz
    toda a vez que a poesia
    me chama para mais uma dança.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

UM SONHO

    NALDOVELHO

    E se você fosse apenas um doce olhar na multidão?
    Uma sensação de déjà vu,
    um sorriso aparentemente tímido, e depois,
    a impressão de que em minha vida
    ficou faltando algo, nem sei bem o quê?
    E se você não fosse este terrível engano,
    este corte que não cicatriza nunca,
    este gosto amargo na boca
    toda a vez que eu me lembro dos seus lábios?
    E se você não fosse uma certa música em meus ouvidos,
    um vidro de perfume propositadamente derramado,
    uma noite fria de inverno, café quente e encorpado,
    depois o prazer e a dor de fumar o meu último cigarro?
    E se você não fosse uma madrugada molhada de insônia,
    este cheiro entranhado em meu travesseiro,
    esta lembrança que me atormenta o tempo inteiro?
    E se você não fosse quem você foi, o que seria do poema?
    E se você não fosse apenas um sonho?








quarta-feira, 8 de junho de 2016

CAIS

     NALDOVELHO

     Quando eu me vejo na enseada,
     embarcação de volta ao cais,
     percebo também o bem
     que toda a distância nos faz,
     pois ela nos traz o bem da saudade,
     a falta que eu sinto do teu cheiro,
     traz a possibilidade do reencontro,
     do abraço apertado, corpos colados,
     e aquela música em nossos ouvidos,
     lembrança das nossas caminhadas
     nas areias daquela praia deserta,
     e do cigarro compartilhado,
     cumplicidade que o tempo não apagou.

     Quando na enseada eu me vejo
     entardecendo em tons de dourado,
     percebo também o bem
     que o tempo inclemente me fez,
     pois cicatrizou feridas,
     curou dor de partida,
     desfez perdas e danos
     e fez dos nossos muitos enganos
     lições que nunca mais vamos esquecer.

     Quando na enseada eu me vejo
     perdidamente enamorado,
     imagino-te luz da lua
     que generosa abençoa o meu corpo,
     e te vejo deitada ao meu lado,
     pele branca, muitas sardas,
     seios fartos, sorriso solto,
     e nos seus olhos eu mergulho
     e neles me afogo feito um louco,
     para depois amanhecer em amarras no cais.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

ANOITECER

    NALDOVELHO

    O silêncio, a calmaria,
    o entardecer que lentamente me invade.
    Ao longe, o sol se despede sem alarde,
    pelas ruas da minha cidade  o mês é de outono,  
    no ar uma certa magia,
    na mania que eu tenho de dobrar esquinas,
    de buscar a brisa macia que foge de mim,
    de desentranhar a poesia que eu posso,
    palavras em versos, coisa estranha...
    Nunca imaginei que anoiteceria assim.



RENASCER

    NALDOVELHO

    Quando o vento frio me beija a boca
    eu escancaro a janela do quarto
    só para ouvir o som de violinos
    e colher no ar a certeza de um sonho
    molhado de paixão e sutilezas,
    pois é assim que eu me alimento do inverno.

    Quando o frio de junho me acaricia o corpo
     eu me lembro de um tempo de solidão e desterro,
    de andar pelas ruas a desafiar meus medos,
    de achar que eu podia dobrar todas as esquinas,
    pois por mais louca que fosse a viagem,
    sempre haveria como retornar ao lar.

    Hoje, na plenitude do meu inverno eu percebo
    que já estou por aqui faz um bom tempo,
    e que de tanto escutar violinos em minha janela,
    eu fiquei viciado no frio que me acaricia o corpo,
    em colher gotas de chuva nos dias nublados,
    em renascer poesia em todas as coisas que eu faço.

    Quando setembro vier, vou saudar primavera,
    vou brindar meus tropeços e recomeços,
    e na esperança de pode continuar a colher delicadeza
    vou escrever poemas de amor, todos sem espinhos.
    Hoje o mês é de inverno e daqui a pouco será agosto,
    quando chegar o dia três eu costumo renascer.

MADRUGADA DE SAUDADE

    NALDOVELHO

    Madrugada de saudade pelas ruas da cidade,
    na procura da poesia, no silêncio das esquinas,
    nos bares entristecidos e vazios,
    nas janelas gradeadas, no rosto solitário da menina,
    na vontade de beber noites e noites de orvalho,
    na incapacidade de vencer nossos medos,
    pois hoje a cidade vive sitiada;
    sitiada por quem nos vê como inimigos,
    e por pouca coisa ou quase nada
    tem o poder de dar um fim às nossas jornadas.
    E o que nos resta é o passado,
    é amanhecer abraçado à nostalgia,
    é sonhar que nos distantes mora a magia,
    talvez na Pasárgada do poeta,
    quem sabe possamos por lá
    ser novamente felizes?

ABRIGOS

    NALDOVELHO

    E se o tempo nos fizesse uma surpresa
    e nos trouxesse a vontade de construir abrigos?
    Quão acolhedores seríamos?
    Deixaríamos janelas e portas abertas?
    Ou só receberíamos por lá,
    o amor, a ternura e o carinho?
    
    E assim sendo, seriam necessitados
    aqueles que batessem à nossa porta?
    Seriam eles os pobres de espírito,
    portadores de doenças da alma,
    gente em busca do perdão e da compreensão?
    Ou nesses abrigos só seriam aceitos
    os puros de coração?

    Que abrigos seriam esses?
    Hospitais de cura ou prisões?
    Seríamos nós nessas casas de acolhimento,
    terapeutas, ou carcereiros?

    Um velho peregrino uma vez me disse
    que seres de luz não precisam ser acolhidos,
    pois eles são o próprio abrigo,
    a própria redenção.

    Respondam-me então:
    que abrigos construiríamos?
    E se em algum deles poderíamos acolher
    a nossa intolerância e incompreensão?