sábado, 6 de junho de 2015

EU SOU

    NALDOVELHO

   Eu sou minhas manhãs friorentas de outono,
   minha preguiça envolta em cobertas,
   um café forte passado sem pressa
   e ainda sinto a falta de um cigarro,
   a minha cama desarrumada,
   meu travesseiro exalando saudades,
   mas também sou a casa que me acolhe,
   a roupa que me veste, a incerteza que me move,
   as paredes do meu quarto, a tapeçaria inacabada
   e um terço pendurado na cabeceira da cama.

   Eu sou a passarinhada no jardim em festa,
   as palavras que eu uso, algumas em desuso,
   o silêncio que me adorna nas madrugadas de junho,
   a luz e a sombra, o claro e o escuro,
   a música que me inspira, o poema que me alucina,
   a magia num emaranhado de possibilidades,
   a crença numa outra realidade, ainda que tardia,
   o meu sorriso tímido, o meu olhar travesso,
   mas também sou o dia que caminha sem alarde,
   ruas, travessas, jardins, recantos da minha cidade,

   Eu sou a vontade de te dar um abraço,
   raízes, emaranhado de histórias, meus laços,
   a raiva, a dor de um desengano, a virada de mesa,
   o tempo que me resta e a necessidade do carinho,
   mas também sou minhas asas de voar sozinho
   e um punhado de pedras espalhadas pelo caminho,
   um pote de delicadezas em cima de uma mesa,
   a inquietude, a lágrima não chorada, a amplitude
   e a interminável jornada de um homem por sua existência.

   Eu sou o meu pé de amora que resiste tudo,
   mas também a acerola promessa de outubro,
   a necessidade de caminhar aos tropeços
   nos meus eternos e esperançosos recomeços
   e sempre em círculos cada vez mais fechados,
   tanto que qualquer dia desses eu corro o risco
   de me transformar num ponto,
   que quem sabe um dia eu possa ser um porto,
   seria tão bom te encontrar por lá!

  


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