quarta-feira, 30 de setembro de 2015

ÁGUAS

    NALDOVELHO

    Eu tenho águas que brotam tardias
    e que o fazem sem fazer alarde,
    escorrem mansas e me acariciam,
    mas também nublam meus olhos
    e inundam a tarde
    de uma ternura que não já cabe
    mais dentro de mim.

    Eu tenho águas que escorrem outono,
    que fertilizam vastos campos de sonhos,
    que renovam rotas e planos,
    pois a cada entardecer eu me vejo
    envolto numa delicadeza
    que floresce em torno de mim.

    Eu tenho águas que anoitecem certezas,
    de lua cheia, mistérios, feitiços,
    fantasia, magia, loucura,
    pois a cada poema eu me vejo
    mais próximo de curar a solidão
    que ainda sangra em mim.

    Eu tenho águas que buscam distâncias
    e é nelas que eu preciso navegar,
    ainda que eu não saiba direito
    aonde elas possam dar.



segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A CASA VAZIA

    NALDOVELHO

    A casa vazia lamentava
    a solidão dos seus quartos,
    chorava as vidraças quebradas,
    a poeira por todo o canto entranhada,
    o cheiro de adeus impregnado nas paredes,
    a umidade e o mofo acumulados por meses e meses.

    A casa vazia sente saudade
    dos sonhos que por lá nos brindavam,
    das horas que pulsavam ternuras,
    da delicadeza das nossas loucuras,
    das palavras que carinhosas se abraçavam,
    da poesia que fomos capazes de cometer.

    A casa vazia entristecida hoje chora...
    Goteiras, rachaduras, prenúncio de demolição,
    fantasmas abraçados aos detritos,
    é noite ainda e o silêncio é insuportável.
    E na sala, em cima do piano, um livro empoeirado,
    parece um diário, coisas escritas sobre nós dois.



     


quarta-feira, 23 de setembro de 2015

COISAS DO BEM QUERER

    NALDOVELHO

    Juriti-gemedeira
    fez buraco em minha parede
    e é de lá, somente de lá,
    que eu vejo a vida florescer.
    
    Pássaro danado este!
    fez um furo na parede
    só para eu ver o sol nascer.

    Agora vai juriti,
    voa e mostra o meu lamento,
    diz a ela que eu morro de saudade
    e que toda a vez que cai a tarde
    eu escrevo um poema:
    coisas do bem querer.


sexta-feira, 18 de setembro de 2015

DE NADA ME ADIANTARIA

    NALDOVELHO


    Eu poderia estender minha mão
    e tocar a linha do horizonte,
    mas de que me adiantaria,
    se do teu rosto eu continuaria distante?

    Eu poderia escrever mil poemas
    e neles declarar aos quatro ventos
    o amor que eu amo,
    mas de que me adiantaria?
    Se ainda assim eu não poderia
    pronunciar teu nome.

    Eu poderia rasgar
    tuas cartas, retratos, bilhetes,
    fugir como se fora um covarde,
    caminhar pela vida sem fazer alarde,
    mas de que me adiantaria?
    Se ainda assim eu adormeço
    e ao acordar permaneço um poeta.

    Eu poderia me negar mil vezes,
    cortar meus pulsos, eviscerar-me,
    de que me adiantaria?
    Se além de mim mesmo, sobreviveria
    o amor que eu sinto, a dor que eu tenho...

    Não! De nada me adiantaria!


quinta-feira, 17 de setembro de 2015

ROSÁRIO DE PENAS

    NALDOVELHO

    Rosário de penas,
    enfiada de versos,
    e a cada verso uma pétala,
    é bem verdade,
    algumas sujas de sangue,
    sempre existirão espinhos
    e eles causam cortes,
    às vezes, até hemorragias.
    Alguns com o tempo
    nem sangram mais...
    O poema deixa seus rastros.

    Parir versos é cicatrizar feridas,
    é curar entorses, lumbago,
    prisão de ventre, espinhela caída,
    e se bobear:
    até mordida de serpente.

    É como ofício de boticário, 
    manipulador de palavras,
    e a cada pequeno frasco um poema.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

QUANDO O GALO CANTOU TRÊS VEZES

    NALDOVELHO


    Quando o galo cantou três vezes
    o sol era só uma promessa
    e na linha do horizonte eu via
    uma tênue luz envolta em cobertas.
    Era a madrugada que surgia
    e quase ninguém percebia,
    só eu vivia o dia que nascia.

    Quando o galo cantou três vezes,
    eu fiz promessas pros santos,
    disse-lhes que não cometeria mais pecados,
    que não seguiria mais trilhas estranhas,
    que não fumaria mais cigarros,
    tão pouco beberia aguardente,
    nada mais de becos sombrios,
    nem tangos, nem boleros, nem fados.

    Quando o galo cantou três vezes,
    um blues sangrava em desespero
    num quarto de motel barato
    e uma mulher debruçada sobre o meu corpo
    derramava seu canto,
    enquanto uma bailarina dançava
    sobre o fio de uma navalha.

    Quando aquele dia amanheceu,
    uma sombra caminhava pela cidade,
    ruas e calçadas molhadas, mês de setembro,
    final de inverno, se bem me lembro,
    e a porta da bar precocemente aberta
    acolhia meus tropeços, meus recomeços.

    E ali mesmo, nos intestinos da cidade,
    tomei mais uma dose da mais pura aguardente,
    fumei mais um monte de cigarros,
    e me aprontei para viver um outro dia
    e cometer mais pecados.

    Quando aquele dia terminou eu percebi,
    que nem todo o poema que eu escrevo fala de amor.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

MINHA SINA DE SER FADO

    NALDOVELHO

    Minha sina de ser fado,
    lágrima derramada em silêncio,
    guitarras emudecidas no armário,
    e um poema sufocado em meu peito
    reclama e pede passagem,
    mas eu não sei onde guardei a chave.

    Minha sina de ser sonho
    a buscar caminhos
    pelos estreitos de concreto
    das ruas da minha cidade
    e de ficar aprisionado
    em becos sombrios de saudade.

    Minha sina de ser vento
    que passa e derruba
    castelos de areia,
    que espalha sobre a mesa
    poemas, cartas, bilhetes,
    que se alimenta de palavras
    e se aprisiona aos significados.

    Minha sina de ser nostalgia,
    poeta que vive em meio a escombros,
    que a cada passo tropeça e caí,
    que continua a achar
    que lhe falta um pedaço,
    que abre a janela e suplica
    a quem por maldade o levou
    que tenha a fineza de devolver.

    Minha sina de ser fado
    com cheiro de bolero cubano
    e ardido como se fosse um blues!

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

QUANDO TE ROUBEI UM BEIJO

    NALDOVELHO

    Quando te roubei um beijo
    trouxe dos teus lábios
    o gosto da lua cheia,
    saliva com gosto de orvalho,
    veneno curado de sereia
    que até hoje circula
    impunemente em minhas veias
    e não se conhece antidoto
    que possa me curar.

    Quando te roubei um beijo
    cometi a ousadia de um poema,
    dos teus seios em minhas mãos, aninhados,
    das tuas pernas entrelaçadas às minhas,
    de palavras embaralhas a um orgasmo,
    janelas e portas fechadas,
    e eu em teus braços aprisionado,
    cativo do bem querer.

    E a cada momento um novo verso,
    e em todos me sentencio culpado
    por ter te invadido abusado,
    agora não tem mais jeito,
    sou presa abatida em teus dentes,
    sou carne fatiada e exposta,
    sou teu pasto e repasto,
    mistura de sêmen, suor e sangue,
    semente que floresce em teu ventre,
    e de um rio tu és a nascente,
    nada mais poderia eu fazer,
    estava escrito um derradeiro poema,
    nada mais poderia eu dizer.

domingo, 6 de setembro de 2015

TRIBUTO A AYLAN KURDI

    NALDOVELHO

    Cubram de flores o corpo desta criança
    e gritem aos quatro ventos
    que nela reside a esperança
    e que a dor não se faz mais presente,
    pois apesar de morta,
    ela vive nos braços do Pai.

    Cubram de flores o corpo desta criança
    e gritem aos quatro ventos
    que todos aqueles a quem ela salvou
    deverão lhe fazer uma prece,
    não de lamento ao que lhe restou,
    mas de agradecimento
    pela vida que ela lhes deixou.

    E que de hoje em diante
    façam constar das tábuas sagradas
    um décimo primeiro mandamento,
    um que condene a mais terrível das penas
    quem indevidamente se disser mártir,
    e a quem por ação ou descaso
    disseminar entre nós a guerra,
    o desamor e a incompreensão.

    Cubram de flores o corpo desta criança
    e que a partir desta e pelas demais gerações
    seu nome seja considerado sagrado e reverenciado,
    pois santa deverá ser sempre a lembrança do seu nome,
    pois apesar de morta ela estará sempre viva
    em todos os nossos corações. 

    E que se dê força de lei a este poema,
    assim lhes determina loucura de um pobre poeta,
    que se recusa a abrigar em seu coração a dor
    do sacrifício desta criança,
    pois hoje já consegue compreender
    um pouco mais os desígnios do Pai.

NADA É O QUE PARECE SER

    NALDOVELHO

    Nada é o que parece ser!
    A janela que pensávamos viver aberta,
    na maior parte do tempo nem janela é.

    E a casa que pensávamos trancada?
    Hoje sabemos que há muito
    foi demolida, não nos restou nada!

    Sabe aquele amor
    que pensávamos derradeiro?
    Se perguntarem a ela,
    certamente, seremos apenas
    uma vaga lembrança,
    um passado distante,
    nada que mereça permanecer.
  
    Eu também não sou
    o que sempre pensei ser,
    mesmo depois de tantos anos,
    sou ainda um esboço,
    um aprendiz do que eu tinha de ser.

    Nada é o que parece ser!
    Estes versos, por exemplo,
    não constroem na verdade
    um bom poema.
    Apenas um pálido esforço
    de tentar compreender.

    E você, é o que aparenta ser?