NALDOVELHO
Coisa mais estranha!
Luz do abajur há
tempos queimada,
assim, acesa, do
nada?
Janela do quarto
que eu teimo em deixar
permanentemente
fechada,
hoje, abusadamente
escancarada!
E este perfume?
Acho que estou
ficando louco.
Na cozinha, pratos e
talheres lavados
e nenhum resto de
comida
que eu tenha esquecido
no forno ou em cima
da mesa?
Na sala, móveis
arrumados,
minha casa
impecavelmente limpa,
cheiro de alecrim,
flores por todo o
canto,
especialmente
monsenhor branco.
Estranho, muito
estranho!
Na estante, meus livros
e CDs
caprichosamente guardados,
cada um em seu lugar.
Uma samambaia chorona
pendurada no canto da
sala...
Não consigo entender!
Pássaros atrevidos em
minha janela;
parece primavera, mas
é abril, outono!
Acho que é um sonho,
pois acabo de escutar
sua voz...
Mas como?
Rosa! Você voltou,
veio me buscar?
- Naldo! Permita-me este
poema, quase um bilhete, pois você vai gostar de saber que a Rosa por aqui
esteve, e eu não podia partir sem lhe contar. Garoto, obrigado por tudo! Onde
quer que eu esteja nunca esquecerei o seu carinho e a sua bondade. Estou muito
feliz, ela finalmente veio me buscar.
Um grande e forte
abraço, do amigo Juvenal.
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Nem sempre uma
passagem se mostra através de um espelho, muitas vezes o acesso nos é permitido
por uma porta, um corredor, uma janela... Às vezes, até por uma folha de papel
em branco, e nela, assim como por encanto, palavras vindas nem sei de onde, a nos
revelar histórias, preciosas lições de amor e compreensão.
E assim penso ter
acontecido, e ainda guardo o bilhete como prova, é fico aqui tentando retratar
no papel aquela última manhã do velho amigo, e me arrisco a negar que toda a
sua obseção e loucura pela perda de sua preciosa companheira o tenham levado a
imaginar e até a construir todo aquele cenário, prefiro crer que realmente sua
querida e saudosa mulher tenha vindo lhe buscar.
E esta é a história
de Seu Juvenal e Dona Rosa, um casal que quando mais jovem eu tive o prazer de
conhecer e com quem eu tive a honra de conviver. Eram muito felizes, tinham
dois filhos, um deles, hoje, meu compadre, e a história de amor que vivenciaram
foi dessas que só se vê num folhetim, construída que fora com muita luta, muito
sofrimento e, principalmente, muita coragem, pois tiveram que romper com todos
os laços para poderem ficar juntos. Eram amantíssimos, o carinho e a ternura
eram constantes, a ponto de transformar a casa onde viviam num templo de paz e
amor onde adorávamos ficar.
Só que um dia, assim,
sem mais nem menos, aos 65 anos, Rosa morreu, num desses infartos fulminantes
que sem o menor aviso lhe acometeu.
Daquele dia em diante, Seu Juvenal, homem forte e
alegre, numa sombra triste e sem vida se transformou. Dava pena de ver! A casa que
antes era um brilho, agora largada, móveis empoeirados, o jardim morto, e o
velho, costumeiramente de muitas palavras, se transformara numa pessoa soturna
e amargurada. Tomar banho, então, muitas vezes nem tomava! Entregou-se em vida,
arrasado pela falta que Rosa lhe fazia.
Seus dois filhos, já
casados, e seus netos, toda a semana, passavam por lá, limpavam tudo, até banho
o obrigavam a tomar. Meu compadre sempre relutou em colocá-lo num asilo e o
velho, já com 70 anos, não admitia a ideia de ter uma cuidadora ou algo assim,
ou mesmo de ir morar com qualquer um deles, e assim nos dizia: um dia Rosa virá
me buscar.
Todas as manhãs quando
por lá passava em direção ao trabalho, eu levava pão fresco e um litro de
leite. Janelas sempre fechadas e Seu Juvenal, nem café havia tomado. No meio
daquela bagunça, ia eu para a cozinha, limpava o que podia e passava um café
bem forte. Depois, sentávamos na sala, ainda que empoeirada, para um dedo de
prosa que invariavelmente girava em torno do mesmo assunto: Rosa e a saudade
que ele sentia.
Numa quarta-feira,
estranhei as janelas abertas! Fui entrando na casa como sempre fazia, e
confesso: com o coração apertado por conta de uma sensação estranha; parece que
eu já sabia.
A cena foi dessas de
arrepiar: a casa toda arrumada, a mesa posta, café recém-coado, pão, manteiga,
queijo, um jarro de monsenhor branco sobre a mesa, até um pratinho de biscoitos
de nata, tal qual Rosa fazia, e Seu Juvenal sentado em sua cadeira, de banho tomado,
com um sorriso no rosto, olhos fechados, morto... E em suas mãos o precioso
bilhete. Mais que depressa liguei para os filhos... Meu compadre a chorar
dizia:
- Naldo, neste fim de
semana eu não pude passar por aí, nem levar as netas para abraçá-lo!
Até hoje fico a pensar aqui com os meus botões: Rosa veio buscá-lo!