sábado, 28 de outubro de 2017

SINFONIA DO CAOS

    RONALDO BUONINCONTRO

    Uma cidade em ruínas
    grita dentro de mim,
    com suas ruas, travessas e praças
    tomadas pelo entulho,
    restos do meu passado,
    sentimentos deixados de lado,
    emoções largadas descuidadas
    na pressa de se chegar a lugar algum.

    Uma casa avarandada,
    quintal antes ajardinado,
    agora tomado de eras e baobás,
    e lá dentro muitos fantasmas,
    alguns já carcomidos pelo tempo,
    outros ainda assustam,
    gritam indecências e heresias,
    na esperança de me enlouquecer.

    Num dos quartos uma cama desfeita,
    uma tapeçaria inacabada,
    um trenzinho elétrico quebrado,
    uma escrivaninha empoeirada,
    numa das gavetas um monte de cartas,
    alguns poemas, rascunhos,
    noutra um álbum de retratos,
    coisas deixadas para trás.

    Aqui fora, não reconheço a minha cidade,
    e as pessoas numa língua estranha
    tentam a todo custo se devorar,
    gritam impropérios, ameaças,
    destroem símbolos sagrados,
    debocham dos puros de coração,
    e eu desesperado me pergunto
    o quanto disso tudo eu fui capaz de causar.


SINFONIA DO CAOS

ABSURDOS

    NALDOVELHO

    A que absurdos nos arremete a poesia?
    Ao absurdo de acreditar na beleza da magia,
    ou no de semear o que a esperança nos propicia?
    Ao absurdo de mergulhar inteiros nos sonhos que temos,
    ou o de tentar perpetuar a realidade que cremos?

    A que absurdos nos arremetemos num poema?
    Ao absurdo de chorar paixões que cultivamos doentes,
    ou no de ousar transformar corações e mentes?
    Ao absurdo da solidão que nos devora faz tempo,
    ou no de tentar explorar os caminhos que temos por dentro?

    A que absurdos nos atiramos inutilmente?

sábado, 21 de outubro de 2017

RÉQUIEM PARA UM POETA MORTO

RÉQUIEM PARA UM POETA MORTO
RONALDO BUONINCONTRO


Faz algum tempo eu vinha premeditando isto e há dias atrás finalmente consegui meu intento: foram três tiros certeiros no peito e a chama que me aquecia e consumia estava morta. Se bem que ela ainda estrebuchou alguns poemas, poucos, mas sem nenhum talento; era ela ou eu!

Mais que depressa envolvi seu corpo em bandagens de linho, especialmente embebidas em resinas, para que mumificado pudesse ser colocado naquela que eu chamo de caixinha de encantamentos, e lá, bem no fundinho do meu quintal, junto a uma roseira branca e espinhenta, o enterrei; lacrando seu túmulo com pedras redondinhas colhidas nas margens de um rio chamado solidão. Fiz-lhe, então, uma oração emocionada e até chorei... Àquela altura a pobre alma já devia estar acertando suas contas com o Criador.

Agora estou livre para ser o que realmente sou. Não mais versos de amor e dor, metáforas, rimas, imagens, sentimentos tolos, bobagens, lágrimas sanguinolentas derramadas, estiagens, noites inteiras de insônia, solidão, nostalgia, não mais a pretensão de parir palavras de ternura, para depois abraçá-las em minha clausura, não mais a magia de asas que voem por dentro!

O mundo não precisa de poesia, os artistas e intelectuais de hoje, também não! São todos donos absolutistas de suas verdades e vivem de semear incompreensão.

O mais interessante e que depois de alguns dias, do meio daquelas pedrinhas redondinhas começou a jorrar uma pequenina fonte cristalina... Não beba desta água, eu pensei! Vai que você fraqueja e o poeta enterrado lá no fundinho do seu quintal resolve renascer.

Agora o que resta é sair pelas ruas, com mãos que possam distribuir bondades e braços de acarinhar os puros de coração!
 




sábado, 14 de outubro de 2017

A VIDA

    NALDOVELHO

    E assim sem mais nem menos
    a vida levantou o véu que cobria meu rosto,
    e extraiu dos meus lábios
    um sorriso doído de solidão e desgosto;
    derramou sobre o meu corpo
    a insanidade de uns poucos
    e com palavras amargas entupiu minha boca.
    
    E não se importou com a minha dor,
    tão pouco com a bagagem que eu trazia,
    muito menos com o amor que eu fora capaz.
    E o que restou foi a lembrança
    do que os seus gestos escondiam,
    e a vontade que nela existia
    de devorar meus sonhos,
    e assim ela os devorou.

    Desligou a televisão, abriu portas e janelas,
    viu florescer pelas ruas o sorriso das crianças
    e os sonhos dos puros de coração;
    mas uma vez mais não se importou;
    acostumada a manipular a realidade,
    fez da sua verdade um manto de incompreensão.

    Foi então que eu percebi
    que ela havia vendado os meus olhos
    na esperança de me fazer como tantos,
    condenando-me aos descaminhos
    dos que perambulam pela escuridão.
    Soçobrei, no entanto, pelos cantos,
    abraçado aos meus poemas:
    asas que eu tenho por dentro
    na busca da minha imensidão. 

terça-feira, 10 de outubro de 2017

DIA SOMBRIO

    NALDOVELHO

    Manhã nublada,
    dia sombrio de outubro,
    na orla o mar espanca o rochedo,
    pelas ruas o vento atiça meus medos.

    Nos jornais as notícias, o arrepio,
    o curto circuito, desencapados os fios
    e a estranha sensação de estar fora de hora,
    de não ser mais este o meu lugar.

    Acho que eu fui embora faz tempo,
    e nem sei se um dia vou voltar.

    Manhã nublada,
    dia sombrio de outubro,
    mexo e remexo em meus apontamentos,
    um poema amargo foi o que restou. 

domingo, 1 de outubro de 2017

A MORTE

    NALDOVELHO

    Longe de mim
    a morte desfaz os nós,
    desembaraça os fios,
    constrói novos enredos
    e diz que assim lhe ensinou o Pai.

    E ela é um anjo sofrido,
    carrega em sua montaria
    alforjes cheios de culpas
    e o rosto crispado
    pelos seus próprios ais.

    Longe de mim
    a morte é guardiã do depois,
    descortina caminhos de ir,
    conduz legiões de esquecidos,
    todos em busca da paz.

    A morte tem as asas
    encharcadas de lágrimas,
    dos amigos, dos inimigos,
    gente pobre, gente rica;
    neste caminho são todos iguais.

    Perto de mim
    a morte devora o meu tempo,
    em silencio tem dó da minha solidão,
    mas ri da pretensão do poeta
    de querer viver sempre um pouco mais.