segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

CONVERSA RIBEIRA

NALDOVELHO

Vó Miudinha era um ser muito especial, dava gosto vê-la caminhar pela vida abraçada às suas peculiaridades, assim como que semeia encantamentos. Lembro, em especial, do café fervido junto com a água, passado sem pressa e borrifado de canela, servido bem quente e melado, que ela adorava dizer encorpado... Sei não, às vezes penso que alguma outra erva, ela ali colocava, pois o vigor que nos trazia era digno de uma poção conjurada em feitiço, ou coisa que o valha. Em suas anotações, que até hoje eu guardo com carinho, bem que procurei a receita, o nome dessa outra erva, mas nada: a velha não revelou.

Vó Miudinha adorava uma prosa, velha faladeira aquela! Mas detestava fofocas, e nos dizia sempre:

- se não tem nada de bom a dizer, melhor deixar quieto!

Não raro eu a encontrava falando sozinha, pelo menos assim eu achava, com as plantas, com os bichos, e até com os objetos, coisas que eu pensava inanimadas, mas que ela sempre nos ensinava:

- tudo tem seu princípio espiritual, sua alma, sua vibração e razão nesse mundo de Deus.

Às vezes eu ficava de longe a apreciar suas conversas com o mundo ao redor, dava gosto de ver! Uma vez peguei-a de “teretetê” no jardim com um banco de ipê, trabalho precioso de um velho carpinteiro, presente dado em reconhecimento a um desmanche de feitiço. E ela gostava de ficar no jardim, cercada de plantas e pássaros, dizia que ali era seu paraíso. E dessa feita, fascinado pela cena, acabei por me aproximar mais do que devia, e ela ao perceber minha presença pediu que me sentasse ao seu lado e disse-me:

- e aí meu neto, fale-me o porquê da curiosidade e espanto?

- Desculpe Vó, é que eu fiquei maravilhado com o carinho, o toque de dedos na madeira trabalhada e na conversa que a senhora estava tendo, e não pude resistir.

- É meu neto, todas as coisas no mundo têm a sua energia, e cada vez que você as privilegia com carinho e ternura mais imantadas de boas coisas elas ficam, e assim é também com este belo banco de ipê. 

- Mas Vó, que conversa vocês estão tendo?

- Ele está a me contar sobre o tempo que era ainda uma árvore frondosa e florida junto de um riacho não muito longe daqui e fala desse tempo com saudade, mas compreende que a vida prosseguiu e que ele hoje tem outras serventias. Fala também do privilégio de ter sido parte da magia que o velho carpinteiro foi capaz ao construí-lo.

- E ele é feliz aqui em nosso jardim, Vó?

- É sim meu filho, mas ele precisa sempre de uma boa prosa, gosta da atenção e do carinho que possamos lhe dar.

- Um dia, eu também vou saber conversar com as coisas, assim como se conversa com toda a gente.

- É fácil meu neto, você tem uma mente sensível e inquieta e um coração cheio de amor e ternura, então é só intuir, é eu já te disse, você vai ser um poeta, desses que vão espalhar beleza e encantamento, e da mesma forma que eu bordo meus panos e faço meus feitiços, de muita serventia você também será.

Nunca mais eu me esqueci daquela lição, dali em diante, não raro eu me via também a conversar com as coisas, com as plantas, com os bichos, com o vento, com o rio, com tudo o que há!

E o mundo até hoje me conta cada coisa!

Eu gostava muito de conversar com um riacho que existia perto da fazenda, ele me trazia notícia dos longes, me falava da cidade grande e de suas mazelas, do mar que existia, bem depois do horizonte, das pedras redondinhas que ele torneava pelo caminho, e até de um rochedo enorme, lá perto dos jardins de Oxalá! Dizia que ele era um rochedo sabido, muito antigo, mais antigo até do que o homem, quantas histórias ele tinha a me contar. E em troca eu lhe levava notícias um seu velho amigo, não mais florido a cada inverno, mas agora banco nos jardins da Vó Miudinha, e que ele era feliz em viver por lá.


Velha feiticeira a Vó Miudinha me ensinou até a ler nas paredes das casas as histórias que elas têm para contar.

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