quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

NÃO EXISTEM POETAS NO PARAÍSO - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

    NALDOVELHO

    Não existem poetas no paraíso,
    pois lá, não seria preciso!
    Seres acostumados a viver nos escombros,
    que pelos caminhos vivem aos tombos,
    e que a cada tombo praguejam,
    blasfemam, cometem heresias,
    viciados que são em escrever poesias,
    que a cada dor sentida sangram,
    inquietos que são, solitários irmãos,
    como poderiam por lá viver?
    Até porque não saberiam!

    Não existem poetas no paraíso,
    pois lá, não seria preciso!
    Loucura, desassossego, revolta,
    palavras vomitadas a sua volta,
    desejo, lascívia, pecado,
    desejar a mulher do lado,
    dedicar-lhe versos indecentes,
    noites passadas em claro,
    pensamentos bastardos, vadios,
    dúvidas, questionamentos, desvios...
    Como poderiam por lá viver?
    Até porque não poderiam!

    Deus foi sábio ao nos dizer:
    aos mansos de coração!
    Somente a estes a boa aventurança 
    de por lá assim ser. 

NO DIA QUE ELA FOR EMBORA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

    NALDOVELHO

    No dia que ela for embora,
    a noite derramará lágrimas de outono,
    poemas de dor e abandono,
    e inundará ruas da minha cidade
    com lamentos que só ela saberia,
    pois conhece todos os sonhos,
    principalmente aqueles que por medo
    não ousamos sonhar.

    No dia que ela for embora,
    o ditador arrancará sua máscara,
    mandará arrombar portas e janelas,
    proibirá nos rostos o sorriso,
    e dirá que assim será preciso,
    para que possamos
    um novo homem gerar.

    No dia que ela for embora,
    a palavra libertária será morta,
    livros serão queimados na praça,
    outros distribuídos de graça,
    cortesia daqueles que se acham
    no direito de determinar
    o que podemos ou não ler.

    No dia que ela for embora,
    pensadores colocados em mordaças,
    muitos encarcerados, malditos,
    alguns poucos festejados, benditos,
    cortesia daqueles que se acham
    no direito de determinar
    em qual verdade podemos crer.

    No dia que ela for embora,
    só um jornal anunciará a sua partida
    e todos serão convocados
    para participar de uma terrível festa,
    pois dali em diante será o que nos resta:
    cortesia daqueles que nos proibirão de sonhar. 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

MEU POEMA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

   NALDOVELHO

   Meu poema é pedra
   extraída do fundo de um rio,
   é palavra lapidada, arrepio,
   é batalha travada em segredo
   entre o tempo e o caminho,
   entre o homem e o seu destino.

   Meu poema é sonho,
   sementes de trigo, moinho,
   cachaça madura, loucura,
   carinho ofertado, ternura,
   noites insones, orvalho,
   refúgio seguro, agasalho.

   Meu poema é viagem,
   dormente de trilho, coragem,
   espírito inquieto, magia,
   grito de revolta, heresia,
   erva macerada, remédio,
   coração fatiado pela solidão.

   Meu poema é água viva,
   palavra liquefeita, despedida,
   urgência por não se saber até quando,
   medo de me transformar em escombro,
   pois a cada batalha vencida, 
   mais sofrido se torna o amanhecer.

   Meu poema é memória,
   coisas guardadas, delicadezas,
   gesto de amor, sutileza,
   tapeçaria inacabada, saudade,
   braços em busca de abraços,
   vontade de viver um pouco mais.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

PROSA DESTRAMBELHADA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

   NALDOVELHO

   Outro dia ao entardecer
   do parapeito daquela janela,
   a palavra ensandecida
   despejava montes de impropérios.
   Gritava em alto em bom tom,
   que a mulher louca da casa da frente
   havia expulsado a todos,
   papagaio, cachorro, parente;
   que teimava em desfilar nua
   e dava gargalhadas indecentes
   toda a vez que lhe batiam a porta;
   que o velho da casa do lado,
   faz tempo, não tomava banho,
   e gostava de dançar pelado
   fingindo estar apaixonado
   por alguém que só ele via;
   que a mocinha do quarenta e dois
   traia o seu namorado
   com o garoto daquele sobrado,
   que por outro lado era apaixonado
   por aquele branquelo sarado
   que trabalhava na padaria;
   que diariamente, quase noitinha,
   na casa vizinha a minha,
   a mulher no homem batia,
   e ele coitado chorava,
   até que condoída ela o abraçava
   e trepavam loucamente,
   achando que ninguém via.

   Todos os dias ao entardecer
   o poeta vira um voyeur
   e vasculha toda a cidade
   em busca de inspiração
   para uma prosa destrambelhada...

   Coisa de quem não tem nada pra fazer!!!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

SEU RETRATO - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

   
   NALDOVELHO

   Quem mandou você colocar seu retrato
   na terceira prateleira,
   lado esquerdo, do meu armário?
   Logo no lado sem porta
   e na prateleira que eu não consigo alcançar!
   Muita maldade sua,
   chego a dizer insensibilidade,
   pois agora ele fica de lá me olhando,
   chega a sussurrar algumas palavras,
   coisas obscenas, bobagens,
   que eu não posso e não devo escutar.

   Quem mandou você cravar 
   suas garras em meu peito?
   Consegui até tirar boa parte,
   mas algumas lascas ficaram
   e inflamam toda a vez
   que eu olho para o seu retrato.
   E o pior é que ele finge
   estar olhando para o outro lado!
   Até lhe percebo um sorriso
   toda a vez que eu choro,
   toda a vez que eu imploro
   para você parar de me atormentar.

   Quem mandou você deixar o seu cheiro
   nos meus lençóis, no meu travesseiro?
   Foi de propósito que você derramou
   pelos cantos um vidro inteiro.
   Foi de propósito que você mordeu meus lábios,
   bebeu meu sangue, minha saliva
   e roubou meu sêmen na hora da partida.

   Quem mandou você dizer que me amava?
   Ainda que fosse verdade, ainda que fosse mentira,
   quem mandou você sair da minha vida?

   Quem mandou você colocar aquele retrato,
   justo num lugar que eu não consigo alcançar? 

sábado, 1 de fevereiro de 2014

COM FIOS DE PURO ALGODÃO - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

   NALDOVELHO

   Na quietude das horas
   eu colho sementes de tempo
   deixadas pela passarinhada
   no parapeito da minha janela
   e com elas cultivo meus dias,
   construo moinhos de vento,
   ergo castelos de areia,
   invento um amor derradeiro,
   parecido com aquele primeiro,
   mas desta feita com final feliz.

   Na quietude das horas
   eu cultivo palavras sementes
   e com elas escrevo histórias,
   embaraço e desembaraço enredos,
   invento e reinvento memórias
   repletas de sutilezas,
   pois assim me ensinou aquela senhora
   enquanto bordava meu nome
   com fios de puro algodão.

   Na quietude das horas
   eu espalho sementes de sonho
   que a passarinhada a tarde recolhe,
   e voa nem sei bem pra onde,
   tomara Deus para a sua janela,
   e que por lá encontre seus braços
   dispostos a colher meu abraço,
   pois assim me ensinou aquela senhora
   enquanto bordava o seu nome
   com fios de puro algodão.