quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A POESIA NÃO PRECISA DE MIM

    NALDOVELHO

    A poesia não precisa de mim,
    a palavra que brota assombrada, sim!
    E ela escorre adocicada
    na mistura de veneno e orvalho
    com o medo de morrer num naufrágio,
    da necessidade de seguir em viagem
    com a esperança que levo na bagagem,
    do sangue que se arrasta em minhas veias
    com os feitiços conjurados na lua cheia,
    da solidão que me envolve e alicia
    com a mania de acreditar em magia.
    
    A poesia não precisa de mim!
    Eu é que preciso dela até o fim.

domingo, 12 de novembro de 2017

VERSOS DE AMOR

    NALDOVELHO

    Mergulhe fundo no coração de sua casa,
    diga a ele para abrir portas e janelas,
    cômodos precisam respirar.
    Expulse de lá a umidade e o mofo,
    tire a poeira que insiste
    em tomar conta do lugar,
    depois, rabisque nas paredes
    versos a quem te trouxe dor e prazer.
    Mas não revele o nome do pecado,
    solidão, nostalgia, saudade,
    coisas que só a você interessa saber.
    Se depois de escritos os poemas parecerem patéticos,
    não se importe, versos de amor assim costumam ser.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

MEMÓRIAS DAS MINAS GERAIS


MEMÓRIAS DAS MINAS GERAIS
RONALDO BUONINCONTRO


Velha casa avarandada de uma chácara localizada num tradicional bairro da pequena São Domingos da Prata, Minas Gerais; nos limites do faz de contas, nas cercanias da BR. 262, estrada que liga Belo Horizonte a Vitória. Por lá sonhos fincavam raízes e alicerçavam na alma coisas que normalmente as pessoas não viam.

Muros de pedras de mão assentadas, como se fizessem parte de uma mandala que ninguém desmanchava, também nem precisava, casa de portas sempre abertas para quem quisesse se achegar. Vastas áreas cultivadas com roseiras, azaleias e samambaias, mangas carnudas, morango, amora, goiaba, lírios e colibris, diversos tipos de bromélias, entre elas o abacaxi, canários da terra e até bem-te-vis.

Um velho banco de imbuia debaixo de um caramanchão pertinho de um córrego, onde a molecada do bairro se fartava sob as bênçãos de Dona Celeste, de primeiro nome Maria, contadeira de estórias que ninguém cria, mas que todos prazerosamente ouviam. 

Tia Celeste, como a meninada chamava, adorava um caso de fantasma, tinha prazer em tecer pequenos enredos assombrados, e a gurizada de olhar esbugalhado não arredava pé; mas que ao final sempre deixavam alguma lição, onde ela dizia que todo o fantasma tinha um assunto pendente, algum embaraço não destrinchado, que enquanto não fosse resolvido não o deixava partir, e que essas pendências normalmente eram fruto de algum mal feito, muitas vezes até da pobre alma que perdida padecia, e padecia, até que pago o seu débito pudesse se libertar.

Dona Celeste tinha uma netinha de nome Anunciação, filha de Maria Eugênia que um dia, engravidou enganada pela paixão e que logo após o parto da menina, caíra no mundo para nunca mais voltar. A menininha tinha de oito para nove anos; ruivinha de olhinhos vivos e azuis, mais parecia um anjo e certamente era a alegria da casa, pois espirituosa como ela só; adorava as histórias da vó, e não se assustava com elas, já que nem ela cria, e caia na risada quando a vó dizia:

- é tudo invencionice minha neta, pra modi eu mostrar para a molecada que o mal feito sempre cobra o seu preço e que eles devem se comportar.

E foi assim que o Antônio conheceu aquele lugar de porteira sempre aberta, com muita fartura e encantamento, tanta que sempre que ele podia passava por lá; ora para tomar um bom café e trocar dedo e meio de prosa e aproveitar os conselhos de Dona Celeste, ora para recolher as frutas e verduras produzidas na chácara para vender pelas ruas da cidade. Dirigia ele, na época, com pouco mais de vinte anos, uma pequena caminhonete, e toda a produção que de lá ele vendia era repartida meio a meio, uma forma de ajudar aquela família tão acolhedora em seu sustento e de também ganhar o seu. Período bom aquele, tão bom que depois de alguns anos, ele conseguiu até dar entrada num caminhão maior, dar voos mais profundos, mais distantes e virar caminhoneiro na rota Belo Horizonte Vitória.

Mas a vida gosta de pregar suas peças... E assim depois de alguns anos, Dona Celeste, mulher honesta e trabalhadeira, que vivia de cuidar do seu canto com muito amor e carinho e a menina Anunciação, a cada dia mais formosa, que de criança com ares angelicais, naquele momento botão de rosa prestes a desabrochar, já com seus quinze para dezesseis anos, e que despertava não só os olhares e os sonhos da molecada, mas também dos homens feitos que porventura passassem por aquele lugar; tinham um drama a vivenciar.

Nesta época, Antônio já estava na estrada e soube por ouvir contar. Anunciação, apesar dos aconselhamentos da Vó, encantada por um rapaz de nome Alceu, acabou por se apaixonar, e dessa paixão nasceu uma linda criança de nome Cecília; só que a partir daí, o Alceu, que tomou estrada com a desculpa de arrumar um emprego e depois vir buscar a Anunciação e a menininha, desapareceu. Dona Celeste que já havia vivido essa mesma história com a sua filha Maria Eugênia, a princípio se desesperou, mas logo o amor falou mais alto e ela se desdobrou e abraçou a netinha e sua filhinha, dando-lhes todo amor e compreensão. Mas de nada adiantou, passado o tempo do resguardo, Anunciação, num misto de vergonha e arrebatamento, e na tola esperança de sua paixão reencontrar, caiu na estrada, de carona em carona, para nunca mais retornar.  

E hoje, dezoito anos depois, cansado de tanta lida, olhos ardidos das muitas jornadas, pele enrugada pelas dores dessa vida, Antônio retornava ansioso para rever Dona Celeste, reencontrar aquela casa de sonhos.

Há poucos meses ele havia largado da vida de caminhoneiro, por conta de uma doença nos pulmões, coisa adquirida por muita fumaça e poeira de estrada, além de ter ficado diabético e com o coração já começando a dar sinais de querer cobrar os anos de desassossego e solidão. Mas ainda assim mantinha acesa na alma a esperança de poder encontrar um pouco de paz e principalmente de cumprir uma promessa; história que até hoje traz arrepios só de lembrar.

E aquela manhã surgia como um retorno às suas origens. Quem sabe depois de cumprida a missão que o fizera regressar, ele pudesse sossegar o corpo e o espírito de tantas andanças, fixar moradia na cidade e com o fruto da venda do caminhão e mais um bom dinheiro que conseguira guardar, comprar uma vendinha e enfim descansar.

Já na chegada junto à porteira da chácara ele percebeu algo estranho, como se o tempo passado tivesse alterado a energia daquele lugar: porteira fechada, grossas correntes, um enorme cadeado e na frente da casa um feroz cão de guarda tomava conta do quintal. Ao tocar a sineta para se anunciar, outros mais vieram ameaçadoramente a lhe afirmar que tudo havia mudado.

Eram quase dez horas da manhã, mês de junho, névoa fina, mas não o suficiente para esconder uma bela silhueta na varanda da casa... E aí ele se anunciou:

- Oh de casa! Aqui é o Antônio Caminhoneiro, Dona Celeste esta?

- Um instante seu moço, que eu vou chamar a Vó pra lhe atender.

A porta da casa se abriu e uma senhora por volta dos seus oitenta e poucos anos, apoiada numa bengala veio em sua direção.

- Desculpe seu moço, Antônio de quê, é o seu nome? De onde o senhor vem, e o quê o traz a este lugar?

- Dona Celeste lembra-se de mim? Eu sou o Antônio que há muitos anos atrás vendia suas frutas pela cidade no meu caminhãozinho, num sabe?  Vim visitar a senhora, matar a saudade do seu café com canela, de sua prosa gostosa e dos seus aconselhamentos. Vim também trazer notícias da Anunciação e uma cartinha que ela pediu para entregar.

Naquele instante Dona Celeste ficou pálida como a cera de uma vela, e perdendo a força nas pernas, sentou-se junto à porteira e desandou a chorar.

- Acode aqui minha jovem! Acho que Dona Celeste está passando mal, acode rápido, minha filha!

A jovem mais que depressa veio até a porteira, e abraçando a velha, olhou furiosa, colocando-lhe a culpa por aquele quase desmaio.

Mas a velha era muito forte e logo se restabeleceu e disse para a menina:

- Cecilia prende os cachorros pro seu Antônio poder entrar, ele é gente amiga e eu estou doida para saber direitinho esta história de cartinha da Anunciação, que eu num estou é entendendo mais nada!

Já sentados na varanda Dona Celeste foi logo perguntando:

- Conta logo esta história direitinho. Cecília, traz um café pro moço.

- Pois é Dona Celeste, o que se deu tem uns três ou quatro meses e foi na minha última viagem. Vindo de Vitória em direção a Belo Horizonte, já com umas três horas de estrada, num posto de parada para o jantar, uma mulher de uns vinte e poucos anos me pediu uma carona; dizia que estava à procura de seu noivo e que depois que acertasse suas contas com ele, iria retornar a sua cidade, rever sua filha, falou que estava há muito tempo fora de casa, com muitas saudades e se eu podia lhe ajudar. Eu respondi que sim, que se tudo corresse bem, dentro de umas três horas ou quatro horas, nós iríamos chegar a Belo Horizonte e que ela podia se acomodar.

- Obrigado moço! Ela disse. O senhor está me reconhecendo, não está não?

- Eu respondi que não, mas que achava a sua fisionomia familiar.
- Aí ela respondeu que já tinha andado tanto por aquela estrada que provavelmente eu já havia lhe dado alguma carona, ou então esbarrado com ela em algum posto de estrada.

- Eu respondi que sim! Era bem provável.

- Seguimos então viagem e quase chegando a Belo Horizonte, perto da meia noite, uma coisa muito estranha me aconteceu. Eu simplesmente apaguei, dormi ao volante e nem sei dizer como não causei um acidente.  Foi tudo muito esquisito, pois eu me lembro de ter acordado uma vez, só que não conseguia me mexer, visão meio turva, e ao meu lado aquela mulher a me dizer:

  - Fique tranquilo seu Antônio, que eu lembro bem do senhor e não vou lhe fazer nenhum mal. Eu sou a Anunciação, neta da Dona Celeste, obrigado pela sua ajuda, pois tenho tentado, já faz um bom tempo, retornar para a minha casa, só que eu não consigo, toda a vez que vou chegando perto da cidade, algo que eu não sei explicar direito acontece e eu me vejo novamente próxima daquele posto de gasolina onde o senhor me pegou e hoje graças ao senhor eu consegui chegar até aqui. Vou colocar no seu bolso uma carta que eu escrevi, onde eu explico tudo o que me aconteceu. Promete entregar a minha vó? Tem também aí algumas palavras para a minha filhinha Cecília, eu preciso que ela me perdoe, pois só assim poderei descansar em paz.

- Acho que passei um bom tempo desacordado, só sei que amanhecia quando fui despertado por um grupo de pessoas, meu caminhão havia tombado do lado direito da estrada, em frente ao cemitério na entrada de São Domingos da Prata. Um médico me examinava, fui colocado numa espécie de maca e de lá pude ver todo o estrago, não sei como não morri.

- Seu moço, como é o seu nome? Perguntava um policial ao meu lado.

- Me identifiquei e em poucas palavras tentei contar o que me acontecera e perguntei ao policial se a moça que me acompanhava estava bem?

- Não tinha moça nenhuma não seu Antônio, o senhor estava sozinho na boleia do caminhão. Acredite, foi coisa de Deus o senhor estar vivo agora.

- Instintivamente coloquei a mão no bolso e lá estava a carta que em meu sonho delírio, a Anunciação disse que colocaria. Não abri, só trouxe até vocês cumprindo a minha promessa.

Dito isto, seu Antônio entregou a carta à Dona Celeste.

Dona Celeste não leu naquele momento, mas é certo que o tenha feito mais tarde. Tomada pela emoção dobrou o envelope e o guardou. E aí começo a falar sobre o motivo do seu espanto.

- Pois é Seu Antônio, o seu relato parece até as histórias que eu costumava contar. Tempos depois que a Anunciação saiu de casa para ir atrás daquele maldito rapaz, o corpo dela foi encontrado na BR. 262, perto de um posto de gasolina, parada de caminhoneiro, mais ou menos a três horas de Belo Horizonte, que provavelmente deva ser o mesmo posto que o senhor nos descreveu. O corpo dela foi transportado para cá e enterrado no cemitério da cidade, vou lhe dar o número da sepultura, se o senhor quiser pode ir até lá comprovar.  Na época, foi uma comoção geral, e de lá para cá, nossa vida nunca mais foi a mesma. 

- Na época a polícia andou investigando e conseguiram prender um caminhoneiro que com o pretexto de dar carona, aproveitou-se da minha menina e depois a matou. Cecília na época estava com uns seis anos e até hoje sofre com o que ocorreu, pois não houve jeito de esconder dela os fatos, cidade pequena, sabe como é que é...

Seu Antônio saiu de lá com uma tristeza enorme eu seu peito, que tragédia, quanta dor nos corações daquelas pessoas tão boas.

Foi no mesmo dia ao cemitério e colocou flores na sepultura da menina de sorriso angelical que existia ainda em suas lembranças, fez uma oração sentida, e assim num repente em seu rosto um vento suave e perfumado, e como por encanto toda a tristeza que afligia seu coração foi dissipada. Naquele momento teve a certeza de que a Anunciação havia finalmente encontrado a paz.

Dona Celeste e sua bisneta Cecília com a ajuda financeira do Seu Antônio voltaram a produzir na chácara e o lugar resgatou a mesma energia boa do passado. Seu Antônio mora até hoje numa pequena casinha nas cercanias e investiu o restante do seu dinheiro numa pequena camionete e voltou a vender as frutas, verduras e legumes, cultivados naquela terra abençoada. 

Ele nunca perguntou a elas sobre o que estava escrito na carta, achou que devia a Anunciação o respeito à intimidade daquela gente sofrida.

Vó Miudinha enquanto viva, pelo menos uma vez por ano, gostava de visitar aquela gente, era muito amiga de Dona Celeste. Foi ela quem me contou esta história.


Memórias das Minas Gerais.