MEMÓRIAS DAS MINAS GERAIS
RONALDO BUONINCONTRO
Velha casa
avarandada de uma chácara localizada num tradicional bairro da pequena São
Domingos da Prata, Minas Gerais; nos limites do faz de contas, nas cercanias da
BR. 262, estrada que liga Belo Horizonte a Vitória. Por lá sonhos fincavam
raízes e alicerçavam na alma coisas que normalmente as pessoas não viam.
Muros de pedras
de mão assentadas, como se fizessem parte de uma mandala que ninguém
desmanchava, também nem precisava, casa de portas sempre abertas para quem
quisesse se achegar. Vastas áreas cultivadas com roseiras, azaleias e
samambaias, mangas carnudas, morango, amora, goiaba, lírios e colibris,
diversos tipos de bromélias, entre elas o abacaxi, canários da terra e até
bem-te-vis.
Um velho banco de
imbuia debaixo de um caramanchão pertinho de um córrego, onde a molecada do
bairro se fartava sob as bênçãos de Dona Celeste, de primeiro nome Maria,
contadeira de estórias que ninguém cria, mas que todos prazerosamente
ouviam.
Tia Celeste, como
a meninada chamava, adorava um caso de fantasma, tinha prazer em tecer pequenos
enredos assombrados, e a gurizada de olhar esbugalhado não arredava pé; mas que
ao final sempre deixavam alguma lição, onde ela dizia que todo o fantasma tinha
um assunto pendente, algum embaraço não destrinchado, que enquanto não fosse
resolvido não o deixava partir, e que essas pendências normalmente eram fruto
de algum mal feito, muitas vezes até da pobre alma que perdida padecia, e
padecia, até que pago o seu débito pudesse se libertar.
Dona Celeste
tinha uma netinha de nome Anunciação, filha de Maria Eugênia que um dia,
engravidou enganada pela paixão e que logo após o parto da menina, caíra no
mundo para nunca mais voltar. A menininha tinha de oito para nove anos;
ruivinha de olhinhos vivos e azuis, mais parecia um anjo e certamente era a
alegria da casa, pois espirituosa como ela só; adorava as histórias da vó, e
não se assustava com elas, já que nem ela cria, e caia na risada quando a vó
dizia:
- é tudo invencionice minha neta, pra
modi eu mostrar para a molecada que o mal feito sempre cobra o seu preço e que
eles devem se comportar.
E foi assim que o
Antônio conheceu aquele lugar de porteira sempre aberta, com muita fartura e
encantamento, tanta que sempre que ele podia passava por lá; ora para tomar um
bom café e trocar dedo e meio de prosa e aproveitar os conselhos de Dona
Celeste, ora para recolher as frutas e verduras produzidas na chácara para
vender pelas ruas da cidade. Dirigia ele, na época, com pouco mais de vinte
anos, uma pequena caminhonete, e toda a produção que de lá ele vendia era
repartida meio a meio, uma forma de ajudar aquela família tão acolhedora em seu
sustento e de também ganhar o seu. Período bom aquele, tão bom que depois de
alguns anos, ele conseguiu até dar entrada num caminhão maior, dar voos mais
profundos, mais distantes e virar caminhoneiro na rota Belo Horizonte Vitória.
Mas a vida gosta
de pregar suas peças... E assim depois de alguns anos, Dona Celeste, mulher
honesta e trabalhadeira, que vivia de cuidar do seu canto com muito amor e carinho
e a menina Anunciação, a cada dia mais formosa, que de criança com ares
angelicais, naquele momento botão de rosa prestes a desabrochar, já com seus
quinze para dezesseis anos, e que despertava não só os olhares e os sonhos da
molecada, mas também dos homens feitos que porventura passassem por aquele
lugar; tinham um drama a vivenciar.
Nesta época,
Antônio já estava na estrada e soube por ouvir contar. Anunciação, apesar dos
aconselhamentos da Vó, encantada por um rapaz de nome Alceu, acabou por se
apaixonar, e dessa paixão nasceu uma linda criança de nome Cecília; só que a
partir daí, o Alceu, que tomou estrada com a desculpa de arrumar um emprego e
depois vir buscar a Anunciação e a menininha, desapareceu. Dona Celeste que já
havia vivido essa mesma história com a sua filha Maria Eugênia, a princípio se
desesperou, mas logo o amor falou mais alto e ela se desdobrou e abraçou a
netinha e sua filhinha, dando-lhes todo amor e compreensão. Mas de nada
adiantou, passado o tempo do resguardo, Anunciação, num misto de vergonha e
arrebatamento, e na tola esperança de sua paixão reencontrar, caiu na estrada,
de carona em carona, para nunca mais retornar.
E hoje, dezoito
anos depois, cansado de tanta lida, olhos ardidos das muitas jornadas, pele
enrugada pelas dores dessa vida, Antônio retornava ansioso para rever Dona
Celeste, reencontrar aquela casa de sonhos.
Há poucos meses
ele havia largado da vida de caminhoneiro, por conta de uma doença nos pulmões,
coisa adquirida por muita fumaça e poeira de estrada, além de ter ficado
diabético e com o coração já começando a dar sinais de querer cobrar os anos de
desassossego e solidão. Mas ainda assim mantinha acesa na alma a esperança de
poder encontrar um pouco de paz e principalmente de cumprir uma promessa;
história que até hoje traz arrepios só de lembrar.
E aquela manhã
surgia como um retorno às suas origens. Quem sabe depois de cumprida a missão
que o fizera regressar, ele pudesse sossegar o corpo e o espírito de tantas
andanças, fixar moradia na cidade e com o fruto da venda do caminhão e mais um
bom dinheiro que conseguira guardar, comprar uma vendinha e enfim descansar.
Já na chegada
junto à porteira da chácara ele percebeu algo estranho, como se o tempo passado
tivesse alterado a energia daquele lugar: porteira fechada, grossas correntes,
um enorme cadeado e na frente da casa um feroz cão de guarda tomava conta do
quintal. Ao tocar a sineta para se anunciar, outros mais vieram ameaçadoramente
a lhe afirmar que tudo havia mudado.
Eram quase dez
horas da manhã, mês de junho, névoa fina, mas não o suficiente para esconder
uma bela silhueta na varanda da casa... E aí ele se anunciou:
- Oh de casa! Aqui é o Antônio
Caminhoneiro, Dona Celeste esta?
- Um instante seu moço, que eu vou
chamar a Vó pra lhe atender.
A porta da casa
se abriu e uma senhora por volta dos seus oitenta e poucos anos, apoiada numa
bengala veio em sua direção.
- Desculpe seu moço, Antônio de quê, é
o seu nome? De onde o senhor vem, e o quê o traz a este lugar?
- Dona Celeste lembra-se de mim? Eu
sou o Antônio que há muitos anos atrás vendia suas frutas pela cidade no meu
caminhãozinho, num sabe? Vim visitar a
senhora, matar a saudade do seu café com canela, de sua prosa gostosa e dos seus
aconselhamentos. Vim também trazer notícias da Anunciação e uma cartinha que
ela pediu para entregar.
Naquele instante
Dona Celeste ficou pálida como a cera de uma vela, e perdendo a força nas
pernas, sentou-se junto à porteira e desandou a chorar.
- Acode aqui minha jovem! Acho que
Dona Celeste está passando mal, acode rápido, minha filha!
A jovem mais que
depressa veio até a porteira, e abraçando a velha, olhou furiosa, colocando-lhe
a culpa por aquele quase desmaio.
Mas a velha era
muito forte e logo se restabeleceu e disse para a menina:
- Cecilia prende os cachorros pro seu
Antônio poder entrar, ele é gente amiga e eu estou doida para saber direitinho
esta história de cartinha da Anunciação, que eu num estou é entendendo mais
nada!
Já sentados na
varanda Dona Celeste foi logo perguntando:
- Conta logo esta história direitinho.
Cecília, traz um café pro moço.
- Pois é Dona Celeste, o que se deu
tem uns três ou quatro meses e foi na minha última viagem. Vindo de Vitória em
direção a Belo Horizonte, já com umas três horas de estrada, num posto de
parada para o jantar, uma mulher de uns vinte e poucos anos me pediu uma
carona; dizia que estava à procura de seu noivo e que depois que acertasse suas
contas com ele, iria retornar a sua cidade, rever sua filha, falou que estava
há muito tempo fora de casa, com muitas saudades e se eu podia lhe ajudar. Eu
respondi que sim, que se tudo corresse bem, dentro de umas três horas ou quatro
horas, nós iríamos chegar a Belo Horizonte e que ela podia se acomodar.
- Obrigado moço! Ela disse. O senhor
está me reconhecendo, não está não?
- Eu respondi que não, mas que achava
a sua fisionomia familiar.
- Aí ela respondeu que já tinha andado
tanto por aquela estrada que provavelmente eu já havia lhe dado alguma carona,
ou então esbarrado com ela em algum posto de estrada.
- Eu respondi que sim! Era bem
provável.
- Seguimos então viagem e quase
chegando a Belo Horizonte, perto da meia noite, uma coisa muito estranha me
aconteceu. Eu simplesmente apaguei, dormi ao volante e nem sei dizer como não causei
um acidente. Foi tudo muito esquisito,
pois eu me lembro de ter acordado uma vez, só que não conseguia me mexer, visão
meio turva, e ao meu lado aquela mulher a me dizer:
- Fique tranquilo seu Antônio, que eu lembro bem do senhor e não vou lhe
fazer nenhum mal. Eu sou a Anunciação, neta da Dona Celeste, obrigado pela sua
ajuda, pois tenho tentado, já faz um bom tempo, retornar para a minha casa, só
que eu não consigo, toda a vez que vou chegando perto da cidade, algo que eu
não sei explicar direito acontece e eu me vejo novamente próxima daquele posto
de gasolina onde o senhor me pegou e hoje graças ao senhor eu consegui chegar
até aqui. Vou colocar no seu bolso uma carta que eu escrevi, onde eu explico
tudo o que me aconteceu. Promete entregar a minha vó? Tem também aí algumas
palavras para a minha filhinha Cecília, eu preciso que ela me perdoe, pois só
assim poderei descansar em paz.
- Acho que passei um bom tempo
desacordado, só sei que amanhecia quando fui despertado por um grupo de
pessoas, meu caminhão havia tombado do lado direito da estrada, em frente ao
cemitério na entrada de São Domingos da Prata. Um médico me examinava, fui
colocado numa espécie de maca e de lá pude ver todo o estrago, não sei como não
morri.
- Seu moço, como é o seu nome?
Perguntava um policial ao meu lado.
- Me identifiquei e em poucas palavras
tentei contar o que me acontecera e perguntei ao policial se a moça que me
acompanhava estava bem?
- Não tinha moça nenhuma não seu
Antônio, o senhor estava sozinho na boleia do caminhão. Acredite, foi coisa de
Deus o senhor estar vivo agora.
- Instintivamente coloquei a mão no
bolso e lá estava a carta que em meu sonho delírio, a Anunciação disse que
colocaria. Não abri, só trouxe até vocês cumprindo a minha promessa.
Dito isto, seu
Antônio entregou a carta à Dona Celeste.
Dona Celeste não
leu naquele momento, mas é certo que o tenha feito mais tarde. Tomada pela
emoção dobrou o envelope e o guardou. E aí começo a falar sobre o motivo do seu
espanto.
- Pois é Seu Antônio, o seu relato
parece até as histórias que eu costumava contar. Tempos depois que a Anunciação
saiu de casa para ir atrás daquele maldito rapaz, o corpo dela foi encontrado
na BR. 262, perto de um posto de gasolina, parada de caminhoneiro, mais ou
menos a três horas de Belo Horizonte, que provavelmente deva ser o mesmo posto
que o senhor nos descreveu. O corpo dela foi transportado para cá e enterrado
no cemitério da cidade, vou lhe dar o número da sepultura, se o senhor quiser
pode ir até lá comprovar. Na época, foi
uma comoção geral, e de lá para cá, nossa vida nunca mais foi a mesma.
- Na época a polícia andou
investigando e conseguiram prender um caminhoneiro que com o pretexto de dar
carona, aproveitou-se da minha menina e depois a matou. Cecília na época estava
com uns seis anos e até hoje sofre com o que ocorreu, pois não houve jeito de
esconder dela os fatos, cidade pequena, sabe como é que é...
Seu Antônio saiu
de lá com uma tristeza enorme eu seu peito, que tragédia, quanta dor nos
corações daquelas pessoas tão boas.
Foi no mesmo dia
ao cemitério e colocou flores na sepultura da menina de sorriso angelical que
existia ainda em suas lembranças, fez uma oração sentida, e assim num repente
em seu rosto um vento suave e perfumado, e como por encanto toda a tristeza que
afligia seu coração foi dissipada. Naquele momento teve a certeza de que a
Anunciação havia finalmente encontrado a paz.
Dona Celeste e
sua bisneta Cecília com a ajuda financeira do Seu Antônio voltaram a produzir
na chácara e o lugar resgatou a mesma energia boa do passado. Seu Antônio mora
até hoje numa pequena casinha nas cercanias e investiu o restante do seu
dinheiro numa pequena camionete e voltou a vender as frutas, verduras e
legumes, cultivados naquela terra abençoada.
Ele nunca
perguntou a elas sobre o que estava escrito na carta, achou que devia a
Anunciação o respeito à intimidade daquela gente sofrida.
Vó Miudinha
enquanto viva, pelo menos uma vez por ano, gostava de visitar aquela gente, era
muito amiga de Dona Celeste. Foi ela quem me contou esta história.
Memórias das
Minas Gerais.