NALDOVELHO
Portão de pinho de riga, corredor
de pedras e ao final dele, uma casa avarandada preservada pelo tempo. Em torno
dela num amplo quintal, jardins de luz e de sombras, onde azaleias namoradeiras
se acasalavam aos antúrios, samambaias viviam enroscadas às roseiras e
bromélias safadas gostavam de ser bolinadas pelo monsenhor. No fundo do quintal,
junto a uma amoreira espaçosa de viços formosa, uma fonte cristalina e uma
pequena gruta, onde querubins e ninfas costumavam se encontrar para namorar. Na
lateral esquerda um abacateiro, e goiabas vermelhas; na direita, manga espada e
carlotinha e entre elas uma exibida acerola. Na varanda, perto de uma das
janelas, confortável rede e uma espreguiçadeira. Junto à porta de entrada um cachorro
de louça, guardião daquele lugar.
E naquela casa morava uma velha
senhora bordadeira que gostava de cultivar ervas e era mestra em macerar
porções, remédio para tudo o que há. O nome dela era Teresa, ou como ela gostava
de ser chamada: Vó Teresa!
Já faz um bom tempo, rapazote
ainda, por conta de umas não bem esclarecidas gasturas, eu andava amuado, sem
rumo, nem direção. Parecia até menino apaixonado que recebera do seu afeto um
sonoro e dolorido não. Mas na realidade nem paixão eu tinha, creio por timidez
ou esquisitice, pois as meninas para mim nem olhavam, e se olhavam eu nem via,
medroso e franzino que era e fraco de coração.
Andava a cada dia mais magro,
pálido e sem ânimo, quando a minha Vó Alice, outra que era sabedora de muitos
feitiços, até lá me levou.
Ainda lembro bem das duas na
varanda, Vó Alice na espreguiçadeira, Vó Teresa na rede, cigarrinho de palha
entre os dedos, uma caneca de café bem forte e entre uma risada e outra,
falavam de coisas que não eu entendia, numa língua estranha, que mais tarde eu
vim saber ser Iorubá. Velhas sabidas aquelas, que além de feitiços e ervas,
conheciam linguagem de outras terras, sem nunca terem vivido por lá.
E eu montado naquele cachorro de
louça, a apreciar a beleza daquele quintal ajardinado e da passarinhada em
festa, tarde friorenta de início de junho, vento macio no rosto e uma enorme
melancolia em meu peito, coisa que eu não sabia explicar.
De repente Vó Alice levantou e
disse:
- menino, você vai ficar aqui por
um tempo, precisa curar esta esquisitice, encorpar, aprender a encarar as
pessoas de frente, olhos nos olhos, e principalmente usar as palavras que hoje
você não tem coragem de pronunciar.
Vó
Teresa se achegou, me deu a mão, e quando eu já estava de pé, me olhou nos
olhos, deu um sorriso gostoso e me abraçou.
Casa
velha avarandada, bem conservada, que mais parecia imune ao tempo, até hoje em
minha memória, preservada como um santuário, vez em quando em minha mente ainda
gosto de visitar. E lá, eu sempre encontro Vó Teresa a cuidar do seu jardim, de
suas ervas, só que agora com o chão todo tomado de pequeninas flores, como se
fosse um tapete de Oxalá!
Foram
quase sessenta dias, entre ervas, unguentos e garrafadas; de rezas para espinhela
caída, até porções a me curar o quebranto, e principalmente a aprender linguagem
de anjo, poesia que me trazia espanto, angústia que eu não conseguia depurar.
Na
manhã seguinte, bem cedo ainda, depois de um delicioso café com queijo minas e angu
de corte, Vó Teresa ordenou:
- menino, pra ficar aqui tem que
trabalhar. Vá limpar o quintal, catar folhas mortas e as flores ressequidas,
você colhe e traz para mim, pois mais tarde eu vou lhe ensinar uns chás e umas
rezas, coisas lá dos longes, magia que você vai precisar usar.
Meninote
ainda, manhã friorenta de junho, de repente nem sentia mais angustia. Folhas,
flores, ervas, água cristalina de uma fonte que eu não cansava de visitar.
E
Vó Teresa a pitar seu cigarrinho de palha, da varanda não cansava de avisar:
- menino, não vai tomar dessa
água, pois por aí ninfas e querubins gostam de fazer safadezas, e quem bebe dessa
fonte nunca mais consegue se aprumar.
Mas
qual: quem conseguiria resistir! Água fresquinha e cristalina, mais parecia
borbulhar na boca, tinha sabor de coisa louca e a garganta ficava queimando,
água ardente e saborosa, coisa igual, eu nunca mais vi!
E foi justamente ali, que passados
uns dias, numa tarde noite enluarada, eu vi estrela menina brotar em meio às
pedras; pequenina ainda, de olhos verdes brilhantes a dizer que queria brincar
comigo, e assim que eu soubesse linguagem de anjo, quem sabe até poder me
namorar?
E
foram dias e noites de ternura e encantamento, e a estrela menina cada vez mais
linda, e em meu peito um coração que batia mais forte, paixão que curava toda
angústia, poesia que depois de um tempo eu conseguia realizar.
E
assim foi, até que numa certa noite, já sabedor do poema, estrela já mocinha me
beijou na boca, e com ela, molhado naquela fonte e mergulhado naquela pequena
gruta, eu aprendi a pronunciar a palavra amar.
Princípio
de agosto, ainda friorento e chuvoso, madrugada que até hoje eu choro, estrela
menina entrou sorrateira em meu quarto, beijou minha boca e no meu peito
despejou um monte de palavras de anjo, poesia que até hoje eu não consegui
escrever, mas que me fez servo dos versos que eu sonho, e que um dia eu sei,
vou conseguir realizar. Depois, sorriu um sorriso de princesa, abriu a janela e
me disse:
- quando sentir saudades, pense
no poema que um dia você vai me dedicar, olha para o céu, que eu de lá vou
continuar a lhe amar.
Abriu a janela, estendeu suas
asas e partiu.
Quando
a chuva passou e o sol nasceu, Vó Teresa na cozinha preparava um chá de forte
cheiro e amargo paladar, e a sorrir assim disse:
- Toma meu filho, este é o
antídoto para o delírio das águas que você durante todo esse tempo desobedecendo
minhas ordens, gostava de tomar.
Naquele
mesmo dia, sentado no chão da varanda, abraçado ao cachorro de louça, eu vi Vó
Alice chegar, e dizer:
- e aí meu neto? Pronto para ir
embora, Vó Teresa já me avisou que o seu coração agora está mais forte, que o
meninote já tem viço de homem, adquiriu um jeito de olhar abusado, e que as
palavras já não o atormentam, e que até linguagem anjo você aprendeu a
pronunciar.
E eu já não mais um rapazote, saí
dali contaminado pela inquietude, viciado em buscar amplitudes, e apaixonado
por uma estrela, sem nunca ter lhe perguntado o nome, virei poeta dos sonhos
que eu tenho, dos caminhos de viajar por dentro, das palavras embebidas em poções
e unguentos, magia que hoje eu sei conjurar.