NALDOVELHO
Numa região serrana do sul do
Brasil, dia claro de março, lá pros idos de 1954, um pequeno lugarejo amanheceu
em polvorosa por conta do nascimento do filho da menina Do Rosário. Triste
mistério que desde o início da gravidez da moça, nem os pais, nem o pároco ou
mesmo o encarregado do policiamento do lugar conseguiram elucidar.
Tudo começou numa tarde friorenta
de junho quando Do Rosário, distraída nos seus sonhos de menina moça, ao
passear pelas áreas de cultivo, perdeu a noção do tempo, viu o anoitecer
envolvê-la, e assim o foi de uma forma tão intensa, a ponto de embaralhar seus
caminhos, impedindo-a de retornar ao lar. Do Rosário, depois de muito caminhar,
cansada e com medo de prosseguir no escuro, resolveu se refugiar aos pés de uma
velha e frondosa macieira com a intenção de descansar, para assim que seus
olhos estivessem acostumados ao breu, tentar retornar para sua casa. Mas o
cansaço foi mais forte e ali mesmo ela adormeceu.
Seu Domiciano e Dona Idalina,
pais da menina, aflitos com o sumiço da mocinha, preocupados com os perigos da
noite e com frio característico da região, juntaram forças com alguns vizinhos
mais próximos e saíram a sua procura. Andaram a noite toda, pois eram muitos os
caminhos e os pomares carregados, quase prontos para a colheita, dificultavam
ainda mais a tarefa, pois não deixavam a claridade da lua e das estrelas passar.
Foi então que quase ao amanhecer, um grito de dor chamou-lhes a atenção e lhes
deu a pista precisa para a trajetória a ser tomada naquela empreitada.
E assim foi: pouco tempo depois
lograram êxito e a encontraram abraçada a uma velha e frondosa macieira, já
estéril pelo tempo, que ali estava ainda por pura homenagem pelo muito que ela
havia produzido em suas colheitas. O dono do cultivo sempre dizia que ela havia
sido a primeira e ninguém deveria tocar nela.
Só que a cena era, ao mesmo
tempo, motivo de alívio e tristeza, pois a menina estava com sua roupa rasgada
e havia em sua saia uma marca enorme de sangue à altura do baixo ventre e tudo
indicava que ela havia sido molestada.
Do Rosário foi imediatamente
levada ao médico do lugarejo, confirmando-se a suspeita: a menina havia passado
por uma experiência das mais traumáticas, sendo constatada também uma febre
muita alta, provavelmente agravada pelo frio da noite.
A menina ficou desacordada por
mais de dez dias, até que a febre cedeu e ela enfim despertou. Acordou, mas nada disse, olhos fixos na
janela, num misto de medo e ansiedade e por muito custo começou lentamente a se
alimentar, aconchegada ao carinho e tristeza de sua preocupada mãe.
Daquele dia em diante, Do
Rosário, se recuperou prontamente, mas manteve-se calada sobre o acontecido,
nada dizia a respeito, era como se em sua mente aquela noite tivesse sido
apagada, apesar da insistente bisbilhotice das pessoas, principalmente do
pároco e da autoridade policial.
Com o passar do tempo, uma sombra
de barriga somada aos enjoos característicos denunciaram a avassaladora
verdade: a gravidez da menina, o que só fez aumentar entre o povo daquele lugar
os comentários.
- Pobre menina, além de ter
sofrido tamanha violência, a vergonha da gravidez e a sua vida destruída...
- Menina ainda, quem vai querer
casar com ela?
Do Rosário, durante todo o tempo
da gravidez, abatida pela situação, agia como se nada tivesse acontecido, e por
mais que todos tentassem descobrir algo, obtinham a mesma resposta de sempre.
- Não sei o que me aconteceu, não
me lembro de nada, não sei o que me aconteceu.
E não foi uma gravidez fácil:
constantes enjoos, cólicas violentas, vez por outra uma febre muito alta que
apesar dos cuidados médicos não encontrava explicação, que surgia assim do nada
e horas depois passava, mas que a consumia. E a menina a cada dia mais
enfraquecida, a ponto de não querer sair de casa, prostrada em sua cama, mal se
alimentava, parecia até uma maldição, coisa difícil de ver.
Sua mãe, já desesperançada com os
acontecimentos, lá pelos cinco meses de gravidez da menina, resolveu então,
contrariando a vontade do médico e do pároco, recorrer a uma velha rezadeira de
nome Das Dores, parteira e feiticeira famosa na região.
Ao chegar à casa da menina, a
velha foi logo dizendo:
- Todos para fora, me deixem aqui
sozinha com a menina, que eu tenho muito trabalho a fazer.
Foi um dia e uma noite de rezas,
chás e unguentos, e só ao amanhecer, a velha saiu da casa abatida como se
tivesse levado uma surra e foi logo dizendo:
- A menina agora vai ficar bem,
nada mais de dores, febres e enjoos.
Dona Idalina, aflita com tudo
aquilo, foi logo perguntando:
- Ela e a criança vão ficar bem,
Das Dores? A menina já sofreu muito e eu estou muito preocupada.
Disse então a velha:
- A menina Do Rosário vai ficar
bem, eu garanto! Só não garanto a criança, nunca vi coisa igual, mas para Deus
nada é impossível, vamos confiar!
E se aproximando da Dona Idalina,
cochichou ao seu ouvido:
- O que aconteceu com a sua filha
tem a ver com a velha macieira onde ela foi encontrada, fico toda arrepiada só
de pensar, é melhor a senhora não dizer nada, não dá para confiar no povo desse
lugar, principalmente no médico e no pároco. Vamos entregar nas mãos de Deus e
rezar.
Dona Idalina não entendeu direito
o que a velha quis dizer com aquelas palavras, mas por via das dúvidas resolveu
não comentar nada com medo do que o povo pudesse pensar.
E assim o tempo passou, até que
finalmente era chegada a hora e as pessoas apreensivas e até penalizadas com
tudo aquilo, comentavam:
- Que Deus lhe dê uma boa hora, e que ela possa
voltar a ter a mesma alegria de antes, apesar da criança que vai chegar.
Como já era de se esperar,
naquele dia, nem o pároco, nem o médico deram as caras na casa de Dona Idalina,
pois não haviam gostado nem um pouco da interferência da rezadeira a quem volta
e meia se referiam como uma feiticeira, alguém que havia feito um pacto com o
diabo.
Seu Domiciano mais que depressa,
saiu em busca de Das Dores, que ao chegar foi logo mandando que todos se
retirassem e que só ficasse na casa a mãe da menina, e mais que depressa
começou o trabalho para o qual havia sido chamada.
Foram muitas horas de aflição e
dor, já que o parto estava encruado. Só ao amanhecer do outro dia a criança
nasceu e para o desespero de Dona Idalina, que aos gritos demonstrava todo o
seu desespero e horror, uma massa disforme, um verdadeiro monstro, pele grossa
como se ali houvesse uma casca, coisa áspera e cheia de pequenos ramos que mais
pareciam finas raízes... Não tinha olhos de ver, nem boca de chorar e dos
ouvidos, pelo menos pareciam, escorria uma seiva esverdeada que exalava um
forte cheiro de maçã.
Não durou nada a pobre criatura,
praticamente um natimorto, pois tão logo a luz do sol banhou o seu corpo,
estremeceu e morreu. Naquela altura, na casa havia um enxame de pessoas
atraídas pelos gritos de Dona Idalina, curiosas para ver o motivo de tanto desespero.
A velha feiticeira, muito
abatida, tratou logo de enrolá-lo numa grossa coberta, tirando-o da visão
daquela gente e foi tratar da menina que, enfraquecida, com todo aquele
esforço, corria evidente risco de morte, já que o parto havia lhe sugado toda a
energia e luz.
Com muita firmeza, a velha
feiticeira expulsou todos os curiosos do interior da casa e tratou da menina
com toda a habilidade que possuía. Entoou rezas, e com suas ervas e feitiços,
preparou um caldo grosso, uma espécie de sopa, que logo resgatou a menina dos
braços da morte, salvando-a do pior.
O pároco e o médico da cidade
foram logo chamados para as necessárias providências e da extrema unção. Assim
que chegou, o médico foi logo examinar Do Rosário e vendo que apesar de muito
debilitada ela não corria mais nenhum risco, tratou de prescrever alguns
cuidados e remédios e foi examinar o pequeno ser.
Ao desenrolá-lo da coberta, não
pode evitar uma expressão de nojo e espanto, nunca havia visto uma criatura
como aquela. Mais que depressa, enrolou-o novamente e tratou de emitir o
atestado de óbito. O pároco que a tudo acompanhava de perto, assustado com o
que havia visto, só sabia segurar seu terço e rezar repetidamente a Ave Maria e
o Pai Nosso, e de uma forma nervosa, com uma voz estridente, logo afirmando em
tom de recusa, que por estar morto ele não poderia dar extrema unção àquela
criatura, que em seu fanatismo religioso ele chamou de filho do demônio e aos
gritos disse para todo mundo escutar que as portas do cemitério do lugarejo,
estariam fechadas para aquela aberração.
Ainda naquele dia, Seu Domiciano,
homem bronco mais de boa índole, tratou de preparar uma pequena caixa de
madeira de modo a abrigar o corpo do pequeno ser, que apesar de toda a repulsa
que a imagem do seu corpo viesse a lhe causar, era seu neto e merecia o enterro
o mais digno que pudesse lhe dar.
Improvisou uma pequena cruz que cuidadosamente pregou na tampa da caixa
e entalhou nela a seguinte frase: Deus lhe acolha meu filho, e partiu para o
cemitério do lugarejo com a firme intenção de enterrá-lo.
Só que o pároco, assim que viu o
bom homem a transportar aquele improvisado caixão, como se a adivinhar seu
intento, se pôs a correr em direção ao cemitério junto com o sacristão, na
firme intenção de impedi-lo, pois como se não bastasse ser aquele o corpo de
uma criatura bizarra, na sua visão fruto de um ato do diabo; havia também o
fato de que segundo a sua crença, como aquele ser não havia sido batizado,
campo santo algum poderia abrigar.
Juntaram-se a eles, boa parte da
população do lugarejo e mais a autoridade policial, que incisivamente impediram
o intento do velho Domiciano, ameaçando-o inclusive de prisão.
Sem ter como melhor resolver a
demanda, Seu Domiciano, resolveu acatar a sugestão do médico do lugarejo que
tentava mediar a situação, e partiu para fazer o enterro atrás do cemitério,
fora do campo santo, numa pequena colina que existia por lá.
Anoitecia quando aquela estranha
criatura baixou à improvisada sepultura, sob os olhares de reprovação daquele
povo. No local, o velho, em cima da cova, cravou com pedras uma cruz e rezou
fervorosamente para que o seu neto fosse acolhido pelo Pai e finalmente
encontrasse a paz.
Feito isso, o velho se retirou em
silêncio, com dolorosas lágrimas da revolta que lhe afligia o coração, e foi
para a casa cuidar de sua mulher e filha, mas nesse momento, já com a intenção
de que assim que a menina Do Rosário estivesse restabelecida, juntarem suas
coisas mais preciosas para saírem daquele lugar.
Passado alguns dias, com a menina
demonstrando força e vitalidade, Seu Domiciano procurou o dono do cultivo para
quem vendeu rapidamente a sua pequenina gleba de terra. Não foi um valor justo,
mas o suficiente para recomeçarem noutro lugar, onde ninguém conhecesse a
triste história pela qual acabavam de passar.
Na véspera da partida, a menina
Do Rosário pediu ao pai que a levasse ao pequeno túmulo improvisado, pois ela
queria fazer uma oração pela alma daquele ser e assim terminar aquela triste
história.
Ao chegar ao lugarejo, foram
direto até a pequena colina onde o velho havia enterrado a criança. Lá
chegando, Do Rosário caiu num pranto convulsivo e debruçada sobre o pequeno
túmulo ficou por mais de uma hora, como se exorcizando o restante da sua dor.
Rezou com fé e devoção, pedindo
ao Pai que amparasse a todos e que perdoasse as pessoas daquele lugar, e
principalmente que acolhesse a alma daquele ser inocente.
Mas ao se levantar para ir
embora, sentiu no ar um forte cheiro de maçã e percebeu assim um tanto
assustada, que aos pés da cruz de pedras cravada no local pelo seu pai, apesar
do pouco tempo passado, uma pequena macieira despontava. Recuperada do susto,
não pode evitar um sorriso, pois aquele sinal havia nela a certeza da imensa
misericórdia do Pai e que Ele havia acolhido o seu filhinho.
O lugarejo até o dia de hoje é
grande produtor de maçãs e a maior parte das pessoas que testemunharam ou
participaram da história já foram ao encontro do Criador. Mas os fatos que
acabo de descrever permanecem entre as pessoas daquele lugar, até porque aquela
imensa macieira atrás do cemitério ainda está por lá. Ironicamente, na época da
colheita, é a mais frondosa, só que ninguém se atreve, têm medo do que lhes
possa acontecer.
Os pais da menina Do Rosário,
também já não estão mais entre nós, e ela se casou com um colono da região
aonde foram morar, mas não teve mais filhos, e vive até hoje, com quase noventa
anos de idade, uma vida humilde e calma, mas guarda a triste lembrança daqueles
dias e se põe a orar toda a vez que lembra.
Outra história que sobrevive até
hoje entre as pessoas do lugar, fala sobre a velha feiticeira, que segundo reza
a lenda, caminha até hoje pelas trilhas e lugarejos da região na prática da
caridade, tudo por um prato de comida e um pernoite. O povo diz que ela é
imortal. Quem sabe um anjo?
O novo pároco diz que tudo não
passa de crendice do povo e que se há alguma verdade no que acabei de lhes
contar, bem provavelmente deve ser coisa do demônio e nada melhor do que uma
boa oração com os joelhos no chão numa súplica ao bom Deus para que Ele nos dê o seu perdão.