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O VERDADEIRO HERDEIRO
NALDOVELHO
Rua arborizada,
segunda casa a direita de quem sobe, bairro do Fonseca, zona norte de Niterói.
Por lá um velho alfaiate, o nome dele era Seu Germano. Calças, camisas e até
meus ternos; caimento impecável, apuro na escolha dos tecidos, coisas que nunca
mais encontrei em outro profissional do gênero. E ele era também um bom papo, homem
vivido, de enorme sabedoria e sensibilidade, bom contador de histórias, um
aristocrata por toda a nobreza de que era capaz, sempre um prazer ali estar e
escutar quando ele dizia que através de suas mãos ele conseguiria ascender aos
céus.
Era casado, segundo
ele, há quase cinquenta anos com Dona Júlia, confeiteira de mão cheia, mulher
de muita espiritualidade e senso de humor. Quantas tardes de sábado passei com
eles e quanto aprendizado entre uma medida e outra, e sempre, e sempre
acompanhadas de um café coado com canela, biscoitinhos recheados, e no final,
um delicioso licor de amoras. Até hoje sinto nos lábios o calor daquele néctar,
coisa difícil de esquecer.
Certa feita ele
me contou sobre um tempo de puro encantamento, década de cinquenta, quando conheceu
Dona Júlia que fazia suas compras no armazém de Seu Abílio, e que de imediato
por ela, ele se apaixonou. Disse-me, então, que foi amor à primeira vista, e
que a princípio ela nem o olhou, interessada que estava na escolha de suas
frutas, pois na época já era precocemente conceituada por conta de suas tortas
e bolos, e principalmente pelos licores que fazia. Mas que o que ele sentira
fora tão forte que cuidadosamente ele se aproximou e pouco a pouco a
conquistou.
Existia uma
particularidade naquele casal que muito me atraia: uma espécie de harmonia
alinhavada pela ternura que só dois espíritos de elevada estirpe conseguiriam
desenvolver. Nossas conversas inevitavelmente recaiam sobre o espiritismo e a
filosofia que envolvia aquela crença, o quanto de poder ali existia, a ponto de
fazer-nos melhores, mais cônscios de nossas obrigações e mais fraternos com os
nossos irmãos.
Dona Julia, era o
que na crença denominamos de médium, e sua especialidade era a da psicofonia.
Dizia-nos trabalhar com uma freira cujo nome em sua última jornada teria sido
Irmã Anna de Lourdes. Quantas mensagens de elevado teor e sabedoria através
dessas manifestações eu tive o privilégio de presenciar. Seu Germano, sempre
atento à sua amada mulher, fazia o seu assessoramento com muito respeito e
carinho, e sempre e sempre com lágrimas nos olhos, tal a emoção que sentia
quando isso acontecia.
E em minha
lembrança, um precioso detalhe sempre despertou muita curiosidade e atenção:
quase sempre as mensagens nos eram transmitidas ao som de música clássica.
Mozart era o preferido, Strauss e Chopin, também tinham seus lugares de
destaque. Mas havia uma exceção: em determinadas ocasiões, Billie
Holiday, e quando isso acontecia não era as Irmã Anna de Lourdes que ela recebia. Certa feita, perguntei-lhe, constrangido pelo meu próprio
estranhamento, o porquê, de ao fundo daquelas mensagens tão edificantes, o som
daqueles blues viscerais e ardidos, coisa meio maldita e que nos arremetia a um
sofrimento tamanho por uma vida desregrada e autodestrutiva, como havia sido a
daquela mulher?
Ela sorria e me
respondia:
- meu filho, o
amargo faz parte das nossas vidas, assim como o mel que encontras nos meus
licores, e se prestares bem atenção, sentirás que lá no fundo do teu paladar
irás encontrar sempre uma pitada de amargor. Faz parte, e é parte importante.
Além do quê, é preciso dar significância ao seu sofrimento, pois só assim ela
conseguirá resgatar seus débitos.
Seu Juvenal
sorria, e dizia que a Dona Júlia, além dos clássicos, era amante de um bom jazz
e dos blues, principalmente os ardidos, e que ele também o era, pois havia
aprendido com o convívio, a perceber a emoção que aquelas músicas passavam e o
aprendizado que a descoberta de quê, muitas vezes, um erro abre a possibilidade
de um novo caminho e que ao final dele, mais sabedoria iriamos encontrar.
Deus meu, aquelas
palavras só aumentaram o meu estranhamento. Eu sentia como se ali houvesse uma
ode ao erro, uma exaltação do pecado, e mais confuso eu ficava.
E ela me dizia:
- meu filho, para
de julgar! Cada pessoa carrega em suas malas, erros e acertos, e esses fazem
parte do crescimento necessário para que se possa atingir a luz. Sem o conflito
constante entre o bem e o mal, entre a virtude e o pecado, entre o coração e a
razão, entre a felicidade e a dor, ninguém alcançará a compreensão necessária
para se transformar num obreiro do Pai, e aí está o verdadeiro objetivo da
reencarnação. O nosso acesso se faz entre os ais. Faz parte da jornada,
naufragar e soçobrar em frangalhos numa praia deserta qualquer, tropeçar e se
ver ferido pelas pedras e cascalhos, sentir a sede e a fome para poder saber do
valor de um riacho de águas claras ou de um pequeno e humilde pedaço de pão. Só
quem conhece a solidão, saberá abraçar fraternalmente um irmão, só quem
sobreviveu à dor do erro e do pecado, saberá ir aos lugares mais trevosos para
resgatar um espírito em sua aflição. É preciso ao ser, a experimentação, pois é
ela que aliada ao refletido conhecimento, nos trará a sabedoria.
E o Seu Germano
complementava:
- por isso Billie
Holiday e seus blues, por isso nesta casa você encontrará sempre tantos discos
de jazz, e se você for ver bem direitinho, muitos boleros, tangos e fados. Sem contar
as sofridas páginas de Chopin e Strauss,
valsas
maravilhosas encharcadas de amor e dor. Vivenciar todas essas coisas faz parte
do crescimento do homem.
E Dona Júlia mais
que depressa dizia:
- agora vamos
tomar um bom café com os meus biscoitinhos e depois um licor, pois esse papo
está bom, mas já foi muito longe.
E a sorrir se
apressava em colocar a mesa.
O certo é que foi
naquela casa e através dos ensinamentos daquele casal, que eu virei um amante
da boa música, principalmente dos blues e do cool jazz. E vejam: eu não tenho
nenhuma dúvida que foi a partir daquela fonte de amor, conhecimento e ternura
que eu abracei o espiritismo; não como religião, já que eu me considero um
homem sem fé, mas pelo conteúdo filosófico dos ensinamentos essenciais para o
crescimento do ser.
Dona Júlia fez
sua passagem já tem bem uns dez anos. Seu Germano partiu fisicamente de nós,
cinco anos depois e sua casa com todos os móveis e utensílios, hoje, se
encontram abandonados, sendo devorados pelo tempo. Dizem que por
desentendimento dos herdeiros, pois apesar de não terem tido filhos, sempre
existirão aqueles, os colaterais, que passaram toda uma vida sem dar valor ao
que de bom por ali eles podiam colher, mas que na hora da herança não se sentem
constrangidos pela ilusão dos bens materiais e brigam, até não poder mais.
Nessa história, a
bem da verdade, eu espiritualmente me vejo como o verdadeiro herdeiro, por todo
ensinamento obtido com aquele casal, tendo inclusive, um pouco antes da morte
do Seu Germano, recebido de presente seus preciosos discos de vinil, que guardo
com o maior carinho, e os cadernos de receitas da Dona Júlia, que quem sabe num
momento apropriado, destinando a renda para a caridade, eu possa ter o prazer
de publicar.
De resto: muita
saudade e a sensação de que a vida ficou um pouco mais sem graça, pois é sempre
duro para os que ficam, a consciência da perda dos seus referenciais.
Estejam onde
estiver, sei que eles estão juntos. Ele com as suas costuras, ela com as suas
tortas e licores, e eu não tenho dúvidas que através de suas mãos mágicas e da
nobreza de suas vidas, os dois ascenderam aos céus.