quarta-feira, 28 de setembro de 2011

VEM! (ARQUIVO)

   NALDOVELHO E JOANA PONS

   Vem!
   Vem dormir e sonhar os sonhos meus,
   acordar em brancos lençóis,
   amanhecer poema de amor
   e em meus braços apaziguar sua dor.

   Vem!
   Faz do meu corpo a sua morada,
   dos meus desejos o alimento preciso
   e dos meus olhos o refrigério da alma,
   pois serei sua amada, infinitamente sua!

   Vem!
   E traz o carinho das mãos delicadas
   a explorar caminhos, dobras, passagens,
   partes sedentas e ainda assim molhadas,
   e deixa em minha pele suas marcas tatuadas.
   
   Vem! 
   E faz meu coração bater acelerado, 
   traz também o seu cheiro e o seu olhar abusado,
   a saborear o amor que dedico pleno,
   e faz de mim, algo que seja só seu.

HORA CERTA DE PASSAR (ARQUIVO)

   NALDOVELHO E DAMARIS

   Por calçadas, por esquinas,
   por outonos, descobertas,
   restos, folhas ressecadas,
   muitas lágrimas abortadas...
   Dizia o pai mais que depressa:
   filho meu não chora!
   Muita pressão, pouca conversa...

   Fui criança inocente,
   ousei sonhos, ganhei prendas,
   explorei noites de inverno,
   ruas, praças, chuva fina,
   colhi marcas, cicatrizes...
   Pra curar minhas feridas
   só com muita aguardente!

   Fui menino insolente,
   macerei ervas ardidas...
   Quem mandou perder o rumo?
   Madrugadas indecentes
   pelos becos desta vida...
   E o pai dizia sempre:
   este menino só dá trabalho! 

   Por caminhos inquietos
   fui sem medos, fui sem dono,
   não tirei o pé do asfalto,
   rompi todas as fronteiras,
   fiz loucuras, fiz besteiras,
   por caminhos que eu nem conto,
   aprendi a viajar.

   Se ainda hoje busco um rumo
   e não dispenso uma demanda,
   é por que tenho o sangue quente,
   mas bem sei onde pisar.
   Desta vida conheço um tudo,
   lado manso, lado bruto,
   hora certa de passar.

HÁ DE EXISTIR UM TEMPO (ARQUIVO)

   NALDOVELHO

   Há de existir um tempo
   de perfeito entendimento
   entre a árvore e o vento
   que soprará assim tão macio
   a acariciar as folhas,
   e onde flores e os frutos
   se eternizarão contentes,
   pois serão colheitas perenes
   do amor que existe em nós.

   Há de existir um tempo
   onde a noite e as estrelas
   emoldurarão a lua
   que tão desavergonhada
   testemunhará satisfeita
   o sentimento a jorrar
   e a tomar conta de nós,
   e onde a emoção será o alimento
   mais puro dos nossos poemas,
   e as lembranças serão sempre boas,
   coisas de nós dois.

   Há de existir um tempo
   onde eu possa confessar que o amor
   é o presente mais valioso
   que eu tenho pra te ofertar,
   e a minha mão, simplesmente,
   possa acariciar teus cabelos,
   teu rosto, teu corpo,
   sem ter que me preocupar
   que o mundo me chama lá fora,
   que infelizmente já é hora
   e eu não posso mais ficar.

   Que esse tempo venha depressa,
   é tudo o que eu quero agora,
   pois hoje o poeta implora,
   lamenta a tua ausência e chora
   em versos o que ele sente.

GOSTO DE ME SENTIR APRISIONADO (LUZ E SOMBRAS)

   NALDOVELHO

   Liberdade é uma falácia
   na plenitude do seu significado.
   Qualquer coisa depende de uma outra
   para que possa ter sentido.
   Por isto construo pontes
   como quem aproxima extremos,
   abro janelas como quem colhe horizontes,
   estabeleço elos, aprofundo raízes,
   espalho palavras, cantigas, poemas
   e coleciono existências...
   Gosto de me sentir aprisionado
   à vida que me proponho,
   pois da mesma forma
   que sou o dono dos meus caminhos,
   sou consequência deles
   e das coisas que por aí semeio.
   Cativo de mim mesmo
   sou o senhor e o meu próprio escravo,
   caminhando aos tropeços
   numa história sem fim.

GOSTO DE GOSTAR DESTAS COISAS (ARQUIVO)

   NALDOVELHO

   Gosto de dias de chuva,
   de preferência os de outono,
   cheiro de terra molhada,
   vento frio varrendo a cidade,
   final de maio e eu suponho,
   que continue a chover amanhã.

   Gosto de café com conhaque,
   cigarrilhas que sejam cubanas,
   violoncelo, violino e piano, 
   música visceral e profana,
   bons livros de cabeceira:
   Cecília, Drumond e Bandeira.

   Gosto de madrugadas desertas
   e de saber que embora me doa,
   sensibilidade deixou de presente,
   coisas preciosas, sagradas,
   lembranças, segredos, guardados,
   pensamentos, palavras, poemas.

   Gosto de gostar destas coisas,
   por certo na solidão do meu quarto,
   medida exata de nostalgia,
   necessária dose de saudade,
   janelas e portas sempre abertas
   muita poesia no ar.

VERSOS DE ALMAS (LUZ E SOMBRAS)

   NALDOVELHO

   Eu colho versos de almas
   toda a vez que amanheço
   e um vento macio aparece
   e traz notícias dos longes,
   sobre coisas que faz tempo
   não são vistas por aqui.

   Eu colho versos de anjos
   toda a vez que entardeço
   e me vejo escutando histórias
   trazidas pela passarinhada
   que costuma invadir minha sala
   e compartilhar comigo um café.

   Eu colho versos de fé
   toda a vez que anoiteço
   e percebo a nostalgia de uma época
   que também guarda muitas histórias
   e escuto a Ave Maria...
   Julio Louzada vez em quando
   ainda passa por aqui.

   Eu colho versos saudosos
   quando a noite se faz plena
   e eu caminho do quarto pra sala,
   e nas teclas do piano
   eu desencravo cantigas,
   valsinhas, toadas, boleros
   e até um samba canção.

   Eu colho versos de sonhos
   sempre que adormeço ao seu lado
   e viajo em delicadezas,
   certezas de um amor que compreende
   que a poesia sobreviveu ao tempo
   e que apesar das intempéries da vida
   semeamos muito mais
   do que se poderia supor.

   Eu colho versos a todo instante
   na esperança de um dia virar poeta
   e poder escrever-Te um poema,
   quem sabe um dia possamos merecer?

terça-feira, 27 de setembro de 2011

FEITIÇO (PROSA POÉTICA)


NALDOVELHO

Eu queria encontrar um bruxo ou um mago, quem sabe?  para curar a minha dor. Talvez uma fada desse jeito nas coisas que eu não fiz direito e hoje com defeito, não consigo consertar.

Tem horas que eu penso que pode ter sido feitiço, praga de amor ou coisa assim! Só sei do amargo na boca, ou quem sabe foram os frutos do mar? Se não estão bem fresquinhos costumam intoxicar. Talvez tenha sido a luz do luar, quem sabe o veneno de um olhar? 

Acho que distraído pisei num despacho, numa dessas encruzilhadas da vida, coisa feita por amor... Jeito esquisito de amar!  Com certeza foi regada a cachaça. Maldita cachaça! Cicatrizou meus cortes, mas não parei de sangrar.  Já disseram que foi feito em noite de chuva e quem fez quis me matar.

Só sei o quanto arde, só sei o quanto dói, aquilo que por medo ou por raiva, por falta de escolha ou por ter feito uma péssima escolha, hoje eu não consigo desentranhar.

Um dia já faz algum tempo me chamaram de mago e que por ser de berço eu conduzia a luz do Oriente e tudo pela glória de Oxalá. Pediam-me conselhos, se acalmavam em meus braços e se aquietavam com o meu olhar.  Aí me chamaram de lobo, de cigano, de errante, de não saber do amor de quem se dá, de estar sempre como quem quer partir em busca de um outro lugar... Acho que neste instante, Oxalá resolveu me abandonar e a luz do Oriente, queimou ou mandaram cortar! 

Então me envolveram em teias, em todas as redes do mar. Sugaram-me todo o sangue, bem aqui pela jugular! Quebraram-me todos em pedaços, foi um custo para remendar.

Desconfio que eu não fiz direito, sinto que ainda tem um monte de pedaços desencaixados, fora do lugar.

Por isto quem souber de um bruxo, de um mago ou de uma fada, que saiba desfazer o mal feito, difícil de ser desfeito; que saiba refazer direito aquilo que eu não fiz bem feito; que saiba estancar o sangue, que saiba arrumar as coisas, cada uma no seu devido lugar... Favor avisar depressa, pois de tão forte feitiço, sozinho eu não consigo escapar.

FECHADO PRA BALANÇO (PROSA POÉTICA)

NALDOVELHO



Chapéu Panamá, terno de linho branco, cravo vermelho na lapela. Uma pulseira de ouro onde se podia ler gravado o nome Rosangela e a dedicatória: com todo o amor que eu tenho. Histórias da malandragem, presente dado, presente devolvido, após adultério. E o pior é que nem foi com outro malandro. Segundo contam, foi de mulher com mulher.

Sexta-feira, dia de rodar pela Lapa, Mestre Jorjão marcava presença nas boates, esquinas perdidas, e tinha sempre mais uma saidera, afinal a noite era uma criança e só ao raiar do dia, ele voltava para casa e pros braços da mulata, mistura de rosa e anjo, toda certinha e aconchegante.

Só que naquela sexta, por conta de uma indisposição, Mestre Jorjão voltou para casa mais cedo e ao chegar, escutou barulhos estranhos, tipo vem cá meu bem e se acaba comigo, me enlouquece e me faz um estrago. Parecia mais coisa feita em encruzo, coisa de Pomba Gira, ou coisa assim...

Não se fez de rogado: uma escada, o silêncio, o cuidado e logo, logo, a cena de amor. Duas mulheres se entregavam, se tocavam e num emaranhado de pêlos, gemidos, suores, orgasmos.

Janela entreaberta denunciava o cenário, e para surpresa do malandro traído, na verdade a vizinha do lado com quem Mestre Jorjão já havia feito do avesso, e que agora se esbaldava nas coxas molhadas daquela por quem tanto amor ele sentia.

Ficou em silêncio apreciando a cena... Ficou até excitado. Nada que pudesse fazer. Nem coragem teve para interromper.

Saiu de fininho, deu uma volta pelo bairro e umas horas depois voltou. Quarto em silêncio, como se nada houvesse acontecido. Abriu a porta, acendeu a luz e nada, Rosângela havia partido. Em cima do travesseiro um bilhete e a pulseira de ouro: "desculpa nego, não deu pra segurar, fui embora com Comadre Elvira, nem adianta me procurar".

De lá pra cá, Mestre Jorjão ficou mais arisco, nem quer ouvir falar em morar junto, prefere as putas da Lapa. Dão menos trabalho, cobram o seu preço e pronto.

Nas rodas tudo se sabe à boca pequena. Falar abertamente, nem pensar! Mestre Jorjão tem fama de certeiro, capoeirista refinado, dizem que de Angola. Melhor não provocar.

Rosângela? Parece que foi vista lá pras bandas de São Paulo, porto de Santos. Virou mulher da vida e Comadre Elvira ainda toma conta. Quem viu, conta que continua bonita, com certa tristeza nos olhos e um jeito estranho de caminhar.

Histórias que vida tem para contar. Malandro esperto e respeitado nas rodas de capoeira, mestre temido... Pulseira de ouro ficou de lembrança, coração fechado pra balanço, nunca mais se apaixonar.

EU NÃO MORO MAIS AQUI (LUZ E SOMBRAS)


NALDOVELHO

O portão de madeira, o cachorro latindo,
muro de pedras tão cheias de limo.
Casa de forro, velha e abandonada,
cadeado na porta, janelas trancadas.
Um passado tão morto, a poeira e os cacos.
O meu quarto vazio, a vidraça quebrada,
eu me lembro de tudo, lembro até de você!
As paredes tão frias, o brilho nos olhos,
as águas deságuam, goteiras pra todo o lado.
O meu rosto molhado, o meu corpo calado,
o barulho da chuva, não consigo esquecer.
Só me resta sair, procurar um abrigo,
na esquina, no bar, procurar um amigo...
Mas nem bar eu encontro e está tudo mudado
e na esquina estranhos, está tudo acabado,
eu não moro mais aqui!

NOITES VAZIAS DE MAIO (LUZ E SOMBRAS)


NALDOVELHO

Estranho
é o som de batidas na porta
e do outro lado ninguém!
Corredor em silêncio,
escadas sombrias,
estiagem de sonhos,
noites vazias de maio.

Estranho
é o tempo que avança
sem que se perceba,
tão lentas as horas,
mas que ainda assim deixam marcas,
rugas, rastros, cansaço,
vestígios dos meus passos,
e não há nada que se possa fazer.

Estranho
é o silêncio da madrugada,
vidraça embaçada,
ruas desertas, insônia insistente,
e o sol aparece num céu de outono,
com nuvens esparsas,
prenúncio de frio, chuva, arrepio,
e por estranho que seja:
o sono resolveu aparecer. 

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

ESTRANHAS HISTÓRIAS (PROSA POÉTICA)



NALDOVELHO

Lembra das estranhas histórias que você costumava nos contar? Já não são tão estranhas, pois o rio que por aqui passava, hoje passa em outro lugar. E lá na estação tem um trem que não solta mais fumaça, que tem pressa, que não sabe esperar e que certamente vai levar coisa alguma pra nenhum lugar.

Sabe o cigarro de palha que você custava tanto a enrolar?  Hoje já vem pronto num embrulhinho tão caro, não dá nem pra comprar! 

Crianças brincando pelas ruas? Já não existem, e se existem, mudaram para outro lugar, ou então foram proibidas de brincar.

Amora na beira da estrada? Nunca mais ouvi falar. Fieira de peixe em noite de lua? Não dá mais pra pescar, vieram uns homens dos longes, mudaram o curso das águas, prenderam o rio numa represa e lá, ninguém consegue entrar.

Lembra do sujeito engravatado que vendia o progresso dizendo que tudo ia melhorar? Morreu afogado numa enchente, chuva forte que os homens não conseguiram represar.

E a casa da esquina? Muro de pedra, quintal com pomar... Mandaram derrubar!  Virou uma gaiola esquisita, não dá nem gosto de olhar.

Bater um papo na esquina?  Tocar violão na calçada? Nem pensar! Hoje todos têm muita pressa, querem chegar bem cedinho, dormir e não descansar.

No mais, é só muita saudade e ficar aqui contando prosas, enquanto minha hora não chega. Qualquer dia desses, eu vou embora também, não sei bem pra onde, mas sinceramente eu espero que seja para um bom lugar.  

DIAS SOMBRIOS (ARQUIVO)


   NALDOVELHO

   Dias sombrios, enlameados, visguentos.
   A lâmina afiada expondo as entranhas,
   dantesca é a visão de um corpo por dentro.

   A vida mutilada por forças tamanhas
   e um grito de dor arranha os ouvidos.
   O medo estampado num rosto ferido,
   estranho concerto, sinfonia do caos.

   O momento presente espremido em meus braços,
   misturado ao sangue de um infeliz mensageiro,
   imagem contorcida de concreto e aço
   e uma criança a implorar pelo seio da mãe.

   Um anjo assiste a tragédia que existe
   no fanático que colérico esbraveja e insiste
   em dizer que a chama depura e renova
   e que ao mártir será reservado a companhia de Deus.

   Quem foi que abriu os portões do inferno?
   Quem foi que soltou o cão raivoso?

   E a lâmina afiada prossegue nervosa
   a expor as entranhas de um homem sincero
   e de um inocente palhaço que padece em meus braços.

   Quem se atreverá a escrever num poema
   um epitáfio voraz que dê crédito ao homem
   pela libertação do tinhoso?

   Quem sabe o que a Misericórdia de Deus
   possa nos reservar?
   Longa é a estrada do ranger de dentes,
   centil por centil Ele há de cobrar.

   Ainda bem que um outro anjo se martirizou no esforço
   de tentar com os seus atos um caminho de Paz
   ao ousar um poema que traduzisse o desgosto
   daqueles que ainda crêem no que o amor possa dar.

   Longa será a seara de um dos Homens do Caminho
   que no dia de hoje retornou ao seu Lar.

   Dedicado a todos aqueles
   que pereceram em conseqüência de atos terroristas

CIGANA (ARQUIVO)


   NALDOVELHO

   Cigana!
   Qual será o meu destino?
   Você que veio lá do Oriente
   e se mostra tal qual um rio...
   Onde estará a trilha
   que eu tanto preciso?

   Você que em seus braços
   abrigou tantos peregrinos
   e que como um oásis
   acolheu tanta gente sedenta...
   Qual será o meu rumo, o meu norte?

   Você que se fez em tão belos versos,
   que nos trouxe o mel em palavras roucas,
   que sacudiu a poeira de nossas roupas...
   Qual será deste poeta a sorte?

   Cigana, por que não revela o segredo?
   Por que o disfarce, o mistério?
   Se quando eu olho em seu rosto
   vejo a verdade dos loucos
   e o poder de curar meus medos...

   Cigana, por que não revela o seu nome?
   E o nome daquele que me pôs no exílio,
   e como um nômade me condenou ao desterro?
   Cigana, por que não decifra meus sonhos?

domingo, 25 de setembro de 2011

ESTILHAÇOS (ARQUIVO)


   NALDOVELHO

   Não quero vê-la fragmentada,
   aos cacos, estilhaçada,
   com o corpo aos pedaços,
   espalhados pelo quarto. 

   Quero vê-la poderosa
   a tomar conta do seu ninho,
   ferida, faminta, que seja!
   mas com as garras de fora
   a proteger as crias,
   senhora do seu espaço.

   Sei o quanto é perigosa,
   já senti suas presas
   enterradas em minhas veias.
   Já lhe servi do meu sangue
   e você já se alimentou
   de minhas entranhas,
   muitas vezes,
   num misto de dor e prazer.

   Quero vê-la, bela, esfinge,
   metade mulher, metade leoa,
   um anjo alado molhado de pecado,
   sempre pronta para me seduzir.

   Só não quero vê-la derrotada aos pedaços,
   prefiro morrer e que seja em seus braços,
   pra depois renascer de você.

ESTALAGEM DOS AMANTES (ARQUIVO)


   NALDOVELHO

   Estalagem dos amantes,
   refúgio dos descrentes,
   tantos anjos indecentes
   procurando se abrigar.
   Tanta gente inocente
   procurando se aquecer
   do inverno destes dias,
   desta chuva insistente...

   E serve um gole de aguardente,
   e traz alguém de colo quente
   que hoje eu quero esquecer,
   um amor incoerente
   que deixou dor de presente,
   que marcou qual ferro quente,
   mas que deu tanto prazer.

   Quero ficar só mais um pouco
   pra me curar deste veneno,
   foi mordida de serpente
   que hoje eu tento exorcizar.

   Logo, logo amanhece
   e eu espanto a solidão,
   pé na estrada, sigo em frente,
   vou atrás de outra ilusão.

ESPÓLIO DE GUERRA (ARQUIVO)


   NALDOVELHO

   Quisera colher em teus lábios um sorriso,
   um que fosse assim sem juízo,
   tipo, loucura muita é coisa pouca,
   e aí, na beira do abismo,
   enlouquecido, escorregar!

   Quisera colher em teus olhos um carinho,
   um que dissimulasse por inteiro a peçonha,
   tipo, só percebi quando era tarde...
   Nem deu pra entender o que me aconteceu!

   Quisera colher em teus braços um aconchego,
   um que fizesse de mim tua presa,
   e caça abatida, jugular em teus dentes,
   só me restasse a morte!
   Mas só depois de saborear
   teu corpo, em cada detalhe.

   Quisera deixar em tua carne minhas marcas,
   e ainda que redundante gritar bem alto o teu nome,
   e ao não saber das minhas pernas, virar espólio de guerra!

   É só tomar posse, nada tenho mais que seja só meu!

ESPÍRITO INQUIETO (ARQUIVO)


   NALDOVELHO

   Eu sou teu descompasso,  
   tua perda de rumo, tua agonia e aflição.
   Sou tempestade que assola teus dias, 
   mas sou também calmaria após a paixão.

   Sou lágrima escondida, 
   sou a materialização da saudade
   e a sombra que assombra tuas noites insones
   e que por pura magia ou misteriosa alquimia
   tu transformas em versos, cantigas, poemas, 
   imagens, jornadas por paisagens diversas,
   estranhas, complexas...

   Sou teu fantasma e desterro e o pulsar dos teus medos,
   mas sou também a coragem para que possas seguir viagem
   em busca da redenção.

   Sou segredo precioso em teus guardados,
   sou o teu sorriso mais belo e o teu olhar mais singelo.

   Sou tua busca incessante, teu caminho e suplício...
   e a inquietude insistente que pelas dobras da vida
   fizeram de tua estrada um caminho só de ida.

   Sou por fim, meu poeta,
   o espírito inquieto que habita teu coração.

ESPESSA NEBLINA (LUZ E SOMBRAS)


   NALDOVELHO

   Não deixe a janela aberta,
   não permita que se dissipe a neblina,
   não devo descerrar a cortina,
   só após escrever um poema
   onde eu possa louvar o seu corpo,
   a sua pele, o seu cheiro, o seu gosto.
   Aí sim, gritar bem alto o seu nome,
   tornar público seus contornos,
   desnudá-la, causar um escândalo,
   um tributo a minha loucura,
   uma ode ao meu amor por você.

   Por enquanto, só a espessa neblina
   que cai sobre o meu quarto.
   Muitos segredos, histórias,
   tantos amores insanos,
   por vezes desejos estranhos,
   por outras carícias profanas...

   Melhor então preservar o segredo,
   melhor caminhar em silêncio
   para não profanar o sagrado,
   para não me perder de você.

EM BUSCA DA REDENÇÃO (ARQUIVO)


   NALDOVELHO

   Por todos os cantos e lados,
   por ruas, por becos, passagens,
   por vias transversas e praças,
   por muitas aldeias, cidades,
   busquei o aconchego fraterno,
   busquei o abrigo seguro,
   usei como senha o Teu Nome,
   encontrei na frieza dos homens
   a distância, o silêncio nervoso
   e até o gesto raivoso
   de quem não me reconheceu
   como um ser igual, um irmão.

   Por trilhas, caminhos, atalhos,
   por terras desertas, distantes,
   oásis, clareiras, montanhas,
   por tantas e quantas nascentes,
   por rios, por deltas, por mares,
   procurei um sinal, uma marca
   que me trouxesse enfim o conforto,
   de um porto, de um ombro amigo. 
   Quem sabe numa pequena estalagem,
   num ser humilde do campo,
   que quisesse dividir comigo
   a paz, a harmonia, o encanto
   de viver no amor e na crença
   de um mundo melhor e mais justo,
   onde os seres se reconheçam
   como filhos de um mesmo Pai?

   Uma vez mais encontrei o silêncio,
   a incerteza, o ódio e a cegueira
   de quem não se permitia um abraço,
   um sorriso, um aperto de mão.
   Continuei a jornada, tristonho,
   eremita, andarilho, um banido
   com a certeza de ser um caído
   em busca da redenção.