terça-feira, 26 de maio de 2015

DAS MORTES

    NALDOVELHO

    Eu morro toda a vez que entardece,
    morro de prazer ao fazer uma prece,
    morro escutando um bom disco de jazz,
    acreditando que vai ser noite de lua,
    e que será sempre fria, não importa quando.

    Eu morro suavemente toda a vez que anoitece,
    morro fingindo que acredito em magia,
    morro acreditando que acredito em Deus,
    assombrado com os milagres do dia
    e com a minha vontade de escrever poesia.

    Eu morro um pouco mais, só não sei até quando,
    morro na constatação do quanto te amo,
    na falta que eu sinto da delicadeza,
    pois ainda que a ternura nos beije a boca,
    falta-lhe a firmeza da paixão.

    Eu morro toda a vez que adormeço,
    às vezes tropeço em meus sonhos,
    às vezes acordo assombrado
    com o teu cheiro em meu travesseiro impregnado
    e com a sensação de ter escutado a tua voz.

    Eu morro toda a vez que abro os olhos,
    morro envenenado pelo orvalho,
    madrugada que me embriaga e arrepia,
    morro intensamente de alegria,
    e agradecendo a dádiva de continuar a viver.

domingo, 24 de maio de 2015

PALAVRAS PRECISAM VOAR

     NALDOVELHO

    Ao virar a página daquele livro
    eu percebi claramente
    a intenção do autor:
    enaltecer o personagem
    e seduzir o leitor.

    Ao olhar para aquela casa
    eu percebi finalmente
    a intenção do construtor:
    abrigar em minha alma,
    poemas de amor e dor.

    Às vezes livro é casa,
    às vezes paredes são páginas.
    Por isto eu percebo em meu quarto
    paredes encharcadas de palavras,
    lágrimas, saliva, sangue, suor.

    Ao fechar a porta do meu quarto
    eu percebo claramente
    a necessidade de abrir a janela:
    palavras precisam voar!


VASTOS CAMPOS DE SOLIDÃO

    NALDOVELHO

    Eu tenho o silêncio
    entranhado em minha alma,
    vastos campos de solidão,
    onde a alma perambula
    em busca de um abrigo,
    de um sorriso amigo,
    de um gesto de paixão.

    Eu tenho o silêncio
    engasgado em minha garganta,
    coisas que eu tinha de dizer,
    palavras que eu não pude pronunciar,
    e a alma gesticula nervosa,
    aflita por sua incapacidade de falar.

    Eu tenho o silêncio
    enraizado em meus poemas.
    Vontade de calar palavras,
    de dormir o sono dos inocentes,
    de sepultar sonhos de outrora,
    de descobrir novos sonhos agora.

    Eu tenho o silêncio
    entranhado em minha alma.
    Vastos campos de solidão.

MAUS HÁBITOS

    NALDOVELHO

    Tenho o péssimo hábito
    de cultivar em meu jardim,
    flores pequeninas e delicadas
    que perfumam impunemente
    a solidão que me devora

    Tenho hábitos estranhos,
    insensatez de um poeta
    que costuma cultivar palavras
    só para poder mastigá-las depois.

    Algumas são tão saborosas,
    e eu costumo saboreá-las em silêncio;
    mas tendo sempre muito cuidado,
    pois existem aquelas
    que deixam um gosto amargo
    e enfraquecem o coração.

    Outro hábito complicado
    e o de ter a pretensão do sonho,
    e eu sonho tanto e tantas vezes,
    que às vezes eu me confundo
    e tenho vontade de não acordar depois.

    Tenho o péssimo hábito de cultivar poemas,
    todos enxertados de palavras e sonhos
    papel em bandeja e muito sentimento.
    Ando aprendendo a cultivar delicadezas,
    quem sabe um dia eu possa
    colher a palavra amor?


domingo, 17 de maio de 2015

MINHA CASA

    NALDOVELHO

    Minha casa é uma ilha
    cercada de luz e sombras,
    ao norte floresce minha solidão;
    a leste, fadas, elfos, gnomos;
    a oeste, feitiços, culpas, incertezas;
    ao sul, a suavidade e a delicadeza
    de crescer, envelhecer e depois morrer.

    Minha casa é uma ilha
    e nela, vastos campos de sonhos
    onde eu colho histórias, poemas,
    misturo enredos, desconstruo meus medos
    na esperança de um dia
    me transformar numa península
    e poder chegar até vocês. 

domingo, 3 de maio de 2015

DELÍRIO DAS ÁGUAS


NALDOVELHO

Portão de pinho de riga, corredor de pedras e ao final dele, uma casa avarandada preservada pelo tempo. Em torno dela num amplo quintal, jardins de luz e de sombras, onde azaleias namoradeiras se acasalavam aos antúrios, samambaias viviam enroscadas às roseiras e bromélias safadas gostavam de ser bolinadas pelo monsenhor. No fundo do quintal, junto a uma amoreira espaçosa de viços formosa, uma fonte cristalina e uma pequena gruta, onde querubins e ninfas costumavam se encontrar para namorar. Na lateral esquerda um abacateiro, e goiabas vermelhas; na direita, manga espada e carlotinha e entre elas uma exibida acerola. Na varanda, perto de uma das janelas, confortável rede e uma espreguiçadeira. Junto à porta de entrada um cachorro de louça, guardião daquele lugar.

E naquela casa morava uma velha senhora bordadeira que gostava de cultivar ervas e era mestra em macerar porções, remédio para tudo o que há. O nome dela era Teresa, ou como ela gostava de ser chamada: Vó Teresa!

Já faz um bom tempo, rapazote ainda, por conta de umas não bem esclarecidas gasturas, eu andava amuado, sem rumo, nem direção. Parecia até menino apaixonado que recebera do seu afeto um sonoro e dolorido não. Mas na realidade nem paixão eu tinha, creio por timidez ou esquisitice, pois as meninas para mim nem olhavam, e se olhavam eu nem via, medroso e franzino que era e fraco de coração.

Andava a cada dia mais magro, pálido e sem ânimo, quando a minha Vó Alice, outra que era sabedora de muitos feitiços, até lá me levou.  

Ainda lembro bem das duas na varanda, Vó Alice na espreguiçadeira, Vó Teresa na rede, cigarrinho de palha entre os dedos, uma caneca de café bem forte e entre uma risada e outra, falavam de coisas que não eu entendia, numa língua estranha, que mais tarde eu vim saber ser Iorubá. Velhas sabidas aquelas, que além de feitiços e ervas, conheciam linguagem de outras terras, sem nunca terem vivido por lá.

E eu montado naquele cachorro de louça, a apreciar a beleza daquele quintal ajardinado e da passarinhada em festa, tarde friorenta de início de junho, vento macio no rosto e uma enorme melancolia em meu peito, coisa que eu não sabia explicar.    

De repente Vó Alice levantou e disse:

- menino, você vai ficar aqui por um tempo, precisa curar esta esquisitice, encorpar, aprender a encarar as pessoas de frente, olhos nos olhos, e principalmente usar as palavras que hoje você não tem coragem de pronunciar.

            Vó Teresa se achegou, me deu a mão, e quando eu já estava de pé, me olhou nos olhos, deu um sorriso gostoso e me abraçou.

            Casa velha avarandada, bem conservada, que mais parecia imune ao tempo, até hoje em minha memória, preservada como um santuário, vez em quando em minha mente ainda gosto de visitar. E lá, eu sempre encontro Vó Teresa a cuidar do seu jardim, de suas ervas, só que agora com o chão todo tomado de pequeninas flores, como se fosse um tapete de Oxalá!

            Foram quase sessenta dias, entre ervas, unguentos e garrafadas; de rezas para espinhela caída, até porções a me curar o quebranto, e principalmente a aprender linguagem de anjo, poesia que me trazia espanto, angústia que eu não conseguia depurar.

            Na manhã seguinte, bem cedo ainda, depois de um delicioso café com queijo minas e angu de corte, Vó Teresa ordenou:

- menino, pra ficar aqui tem que trabalhar. Vá limpar o quintal, catar folhas mortas e as flores ressequidas, você colhe e traz para mim, pois mais tarde eu vou lhe ensinar uns chás e umas rezas, coisas lá dos longes, magia que você vai precisar usar.

            Meninote ainda, manhã friorenta de junho, de repente nem sentia mais angustia. Folhas, flores, ervas, água cristalina de uma fonte que eu não cansava de visitar.

            E Vó Teresa a pitar seu cigarrinho de palha, da varanda não cansava de avisar:

- menino, não vai tomar dessa água, pois por aí ninfas e querubins gostam de fazer safadezas, e quem bebe dessa fonte nunca mais consegue se aprumar.

            Mas qual: quem conseguiria resistir! Água fresquinha e cristalina, mais parecia borbulhar na boca, tinha sabor de coisa louca e a garganta ficava queimando, água ardente e saborosa, coisa igual, eu nunca mais vi!

E foi justamente ali, que passados uns dias, numa tarde noite enluarada, eu vi estrela menina brotar em meio às pedras; pequenina ainda, de olhos verdes brilhantes a dizer que queria brincar comigo, e assim que eu soubesse linguagem de anjo, quem sabe até poder me namorar?  

            E foram dias e noites de ternura e encantamento, e a estrela menina cada vez mais linda, e em meu peito um coração que batia mais forte, paixão que curava toda angústia, poesia que depois de um tempo eu conseguia realizar.  

            E assim foi, até que numa certa noite, já sabedor do poema, estrela já mocinha me beijou na boca, e com ela, molhado naquela fonte e mergulhado naquela pequena gruta, eu aprendi a pronunciar a palavra amar.

            Princípio de agosto, ainda friorento e chuvoso, madrugada que até hoje eu choro, estrela menina entrou sorrateira em meu quarto, beijou minha boca e no meu peito despejou um monte de palavras de anjo, poesia que até hoje eu não consegui escrever, mas que me fez servo dos versos que eu sonho, e que um dia eu sei, vou conseguir realizar. Depois, sorriu um sorriso de princesa, abriu a janela e me disse:

- quando sentir saudades, pense no poema que um dia você vai me dedicar, olha para o céu, que eu de lá vou continuar a lhe amar.

Abriu a janela, estendeu suas asas e partiu.

            Quando a chuva passou e o sol nasceu, Vó Teresa na cozinha preparava um chá de forte cheiro e amargo paladar, e a sorrir assim disse:

- Toma meu filho, este é o antídoto para o delírio das águas que você durante todo esse tempo desobedecendo minhas ordens, gostava de tomar.

            Naquele mesmo dia, sentado no chão da varanda, abraçado ao cachorro de louça, eu vi Vó Alice chegar, e dizer:

- e aí meu neto? Pronto para ir embora, Vó Teresa já me avisou que o seu coração agora está mais forte, que o meninote já tem viço de homem, adquiriu um jeito de olhar abusado, e que as palavras já não o atormentam, e que até linguagem anjo você aprendeu a pronunciar.


E eu já não mais um rapazote, saí dali contaminado pela inquietude, viciado em buscar amplitudes, e apaixonado por uma estrela, sem nunca ter lhe perguntado o nome, virei poeta dos sonhos que eu tenho, dos caminhos de viajar por dentro, das palavras embebidas em poções e unguentos, magia que hoje eu sei conjurar.