quinta-feira, 30 de outubro de 2014

TODA A VEZ QUE EU FECHO OS OLHOS

    NALDOVELHO

    Toda a vez que eu fecho os olhos
    eu vejo aquele menino
    de mãos dadas com seus sonhos,
    a caminhar pelas ruas
    destilando desenganos.

    Vira e mexe ele retorna
    e diz que a solidão ainda o devora,
    madrugada pelas ruas,
    aprisionado às esquinas,
    ao sorriso da menina
    que sem mais nem menos
    lhe disse adeus!

    Toda a vez que eu fecho os olhos
    eu vejo aquele menino
    nas ardências da paixão,
    meio bêbado, meio louco,
    tropeçando na saudade,
    abraçado ao arrepio
    das noites nostálgicas de maio,
    com os olhos cheios d’água,
    sem saber como fazer.

    Toda a vez que eu fecho os olhos
    eu vejo o dia nascer:
    praia deserta, chuva fina, outono
    e o menino e suas descobertas
    contabilizadas desde cedo;
    muitas perdas, poucos ganhos,
    muitos danos!

    

VIDRAÇA ESTILHAÇADA

    NALDOVELHO

    Num simples corte,
    lâmina afiada,
    abre de fora a fora a cortina.

    Amplitude de movimento
    e uma pequena pedra...
    Vidraça estilhaçada,
    vento invadindo a sala,
    trazendo a tarde em seus braços.

    Lá no meio da vida,
    um menino assustado, disfarça,
    finge que não é com ele,
    e em passos largos
    caminha em direção
    a próxima esquina.

    Eu sempre quis quebrar-lhe a vidraça,
    mas faltava-me a coragem.
    Tive que voltar a ser menino
    para poder fazer.

   Agora, fica por sua conta!
   Saboreie a tarde que eu trouxe
   para você.


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

UMA ENORME PEDRA

    NALDOVELHO

    Eu sei de uma enorme pedra
    cravada desde o início dos tempos
    perto de uma nascente
    lá pros lados do amanhecer
    e quem passa por ela
    deixa gravado o seu nome,
    às vezes uma simples marca,
    um verso, um poema,
    uma mensagem de amor.
    Mas eu sei que existem aqueles
    que por amargura ou desassossego,
    gostam de deixar por lá,
    marcas de ódio e de dor.

    Às vezes aquele que passa
    leva da pedra uma lasca
    na esperança de plantá-la
    no quintal de sua casa
    e um dia poder vê-la
    em todo o seu esplendor.

    Eu sei de uma enorme pedra
    desde o início dos tempos
    e eu nunca escrevi nada nela,
    nunca me achei merecedor.
    Mas confesso que sempre que posso,
    eu a acaricio, e inspirado em suas marcas,
    costumo escrever poemas de amor.
    E esta tem sido a minha escolha!

    Quem sabe um dia 
    eu também possa ser merecedor.

domingo, 26 de outubro de 2014

ESPINHOS

    NALDOVELHO

    Tenho espinhos espetados pelo pé,
    lembranças do tempo
    que eu caminhava pela fé.
    Tempos consagrados à loucura
    de acreditar que tudo eu podia
    e não importa o que eu fizesse,
    ainda assim o merecia!
    Ergui pontes que uniam cidades
    que não se conheciam,
    e nessa faina destruí vidas
    que não aceitavam o que eu dizia.
    Hoje quando volto a esses lugares,
    vejo medo e incompreensão
    nos olhos daqueles
    que nunca se viram como irmãos.

    Tenho as minhas mãos dilaceradas
    por abrir clareiras, derrubar fronteiras...
    Tempos consagrados ao trabalho
    de levar Sua palavra a todos lugares
    e não importava as crenças
    que por lá cultivavam!
    Mais uma vez destruí vidas
    daqueles que não aceitavam
    minhas palavras como Suas.
    Hoje ao caminhar por essas estradas
    sinto a dor daqueles que sofreram
    e escuto o grito daqueles que pereceram.

    Hoje eu tenho em meu corpo muitas chagas
    e em meu coração uma certeza:
    muitos dos que padeceram em minhas mãos
    hoje se sentam a Sua mesa
    e eu ainda luto para merecer Seu perdão.

sábado, 25 de outubro de 2014

NÃO ABRA A JANELA

    NALDOVELHO

    Se você abrir a janela
    o intrometido do vento vai entrar,
    arejar todo o quarto
    revirar nossos trapos
    espalhar nossos retratos
    e ainda vai rir de nós dois.

    Se você abrir a janela
    o tempo vai entrar,
    só para nos mostrar até quando,
    e vai nos fazer infelizes,
    vai nos trazer solidão, nostalgia,
    e depois que ele passar, cicatrizes!

    Abra só a cortina,
    e deixe a lua nos iluminar,
    ela é amiga dos amantes,
    alcoviteira famosa...
    Seu único defeito,
    é gostar de nos espiar.



NÃO QUEIRAS BEBER DAS MINHAS LÁGRIMAS

   NALDOVELHO

   Por que tantas paredes,
   tantas portas, tantos cadeados,
   tantas trancas, tantas tramelas?
   Por que a verdade escondida
   nessa sala estranha e vulgar?
   Por que tantos espinhos
   a impedir nosso acesso?

   Se em teus olhos
   eu não vejo a ternura,
   por que insistes em caminhar
   pela noite escura?
   Por que a palavra
   atirada como farpa?
   Por que tantos abismos?

   Tu sabes quantos de nós
   moram do outro lado da rua?
   Sabes quantos passam fome?
   E quais são os nossos nomes?

   Por que finges nos dar a mão,
   quando na realidade
   estão fechadas as portas
   do teu coração?

   Não queiras beber das minhas lágrimas,
   elas não vão matar tua sede,
   tão pouco vão amenizar tua culpa
   e te trazer o perdão.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

NA FALA DA PAIXÃO

    NALDOVELHO

    Caminho em volta da palavra
    numa dança solitária
    de sedução e encantamento.

    E assim eu a cortejo,
    ritual prazeroso
    entre o poeta e o verso.

    Às vezes, na ânsia do poema,
    colho prematuramente um orgasmo,
    perco o verso, a fantasia e choro.

    Mas ela retorna e me envolve,
    acaricia meus sentidos
    e me mostra seus caminhos.

    E assim ela explode e ilumina o papel,
    leito sagrado do poema,
    orgasmo preciso de um poeta,
    na fala da paixão.

    Poema inspirado na música "NA FALA DA PAIXÃO"
    de autoria de Egberto Gismont. 


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

OUTUBRO

    NALDOVELHO

    Chove dentro do meu quarto.
    Lá fora: ardência, incoerência, estiagem.
    Aqui dentro: rio de incertezas,
    águas turvas de outubro,
    corredeiras dentro de mim.
    Minha alma se debate inutilmente,
    desafia as pedras, meus medos,
    recusa as margens, segredos,
    atravessa desfiladeiros e vales
    e deságua numa noite sem fim.

    Agora chove dentro de mim.
    Lá fora: anjos caídos choram,
    se arrependem de terem debochado da aurora,
    sentem frio, fome, sede e imploram,
    pedem que os libertem da maldição.
    Aqui dentro: o poeta se cala,
    entristecido com a loucura dessa gente
    que aprisionou águas e destruiu nascentes.
    Olha pela janela e se sente um estranho,
    e em silêncio, mergulha em sua solidão.


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

NO CHÃO DO MEU QUARTO

    NALDOVELHO

    Tropeço em seu corpo
    estendido no chão do meu quarto.
    Faz tempo você partiu,
    mas deixou restos por aqui.
    É como se fosse um fantasma
    que às vezes se materializa,
    tumultua todo o ambiente,
    dá gargalhadas indecentes,
    cantarola aquela maldita música
    e depois levada pelos ventos,
    desaparece, vai em frente!

    Mas ficam os miasmas,
    e eu os percebo claramente
    no tormento do seu perfume
    entranhado em minha cama,
    na saudade insistente
    que assim sem mais nem menos
    reaparece e arde
    e na maldita nostalgia
    que não me deixa dormir.

    Tropeço em seu corpo
    estendido no chão do meu quarto
    toda a vez que eu percebo
    feridas não cicatrizadas,
    e de nada adianta
    jogar seu corpo pela janela,
    você volta, e de novo volta!
    Só para mostrar o quanto eu amei. 

domingo, 19 de outubro de 2014

INQUIETUDE

   NALDOVELHO

   Como se fosse a fome
   ela doeu em meu estomago,
   revirou minhas entranhas,
   me jogou num labirinto,
   até hoje busco a saída,
   uma trilha, um fio de esperança
   trazido por um novelo de lã.

   Como se fosse a nostalgia
   ela mexeu em meus guardados,
   espalhou o caos pela casa,
   questionou minhas verdades,
   contrariou minhas vontades,
   deixou veias e artérias entupidas,
   cicatrizes em meu coração.

   Como se fosse a paixão
   ela disse que era um sonho,
   deixou marcas, mapas, vestígios,
   escreveu muitos poemas
   e assim sem mais nem menos partiu,
   deixando cheiro de ausência
   entranhado em minhas mãos.

   Como se fosse o amanhã
   ela deixou janelas e portas abertas,
   necessidade de continuar no caminho
   e eu tive que me reconstruir por inteiro,
   renascido das minhas cinzas,
   poeta dos meus escombros,
   passageiro da solidão.

sábado, 18 de outubro de 2014

NO MEIO DA MINHA DESORDEM

    NALDOVELHO

    No meio da minha desordem:
    um sonho interrompido,
    um gemido de dor,
    uma ferida em carne viva,
    uma vidraça estilhaçada,
    papeis amontoados em cima da mesa,
    poemas que eu não consigo escrever
    e um monte de penas
    espalhadas pelo quarto,
    coitado daquele pássaro,
    acho que estava na muda,
    não pode cantar o seu pranto
    e ficou encolhido
    na prateleira da estante
    até o inverno passar.

    No meio da minha desordem:
    um álbum de retratos,
    um sorriso amargo no rosto,
    um cheiro de terra molhada,
    uma tapeçaria inacabada,
    uma vela de sete dias
    acesa num canto do quarto,
    um gosto estranho na boca
    pela falta dos teus lábios,
    na parede do quarto um quadro,
    paisagem gélida e monocromática,
    e o tempo a dedilhar numa viola
    uma toada estradeira
    que fala de amores derradeiros,
    foram tantos, que não cabem mais.

    No meio da minha desordem
    esperando o inverno passar.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

LADY DAY

    NALDOVELHO

    Na parede do meu quarto
    pintei uma imensa e luminosa janela
    e nela, uma enorme lua nublada
    para que toda sexta-feira,
    um pouco antes da meia-noite,
    ela possa invadir meu quarto
    e assim aconchegados possamos dançar.
    Uma garrafa de uísque, um balde de gelo,
    eu pessoalmente prefiro um conhaque,
    um maço de cigarros, e na vitrola,
    sempre a mesma música: Tenderly!
    Lady Day gosta de caminhar 
    e cantarolar nua pelo meu quarto,
    adora ler meus poemas,
    e diz não entender o porquê
    de tanta angustia e nostalgia
    nas coisas que eu costumo escrever.

    Outro dia ela me disse
    que a poesia que eu faço
    é filha bastarda do jazz!
    É! Acho que ela tem razão.
    No fundo, no fundo,
    a minha poesia para ser boa
    tem que ser meio maldita,
    coisa esquisita que sangre
    pelas pontas dos dedos,
    hemorragia disfarçada em palavras,
    que é para ninguém poder ver.

    Lá pelas tantas, quase madrugada,
    ela sussurra em meus ouvidos
    um blues visceralmente ardido
    e com um sorriso amargo nos lábios,
    se despede e pergunta: até quando?
    E eu lhe respondo:
    enquanto houver poemas para escrever.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O TEMPO QUE EU TENHO POR DENTRO

     NALDOVELHO

     O tempo que eu tenho por dentro
     é diferente do tempo
     que me devora por fora.
     O de fora destrói meus planos,
     e mesmo que eu diga
     que ainda há tempo,
     ele sorri ironicamente,
     enfraquece meu corpo,
     enruga minha pele
     e diz que o meu coração
     é uma máquina com data de validade
     e que qualquer hora dessas vai parar.
     O de dentro faz diferente:
     afaga meus cabelos,
     me convida para dançar
     e diz que a eternidade
     é uma longa estrada
     que eu mal comecei a trilhar.

     O tempo que eu tenho por dentro
     gosta de construir enredos
     e traz em suas mãos
     as chaves de muitas portas
     e diz carinhosamente
     que longe é perto para os que sonham
     e não se importam com o estrago
     que o tempo que nos devora por fora
     possa nos causar.

    O tempo que eu tenho por dentro
    é semente, é alimento, é poesia,
    é milagre que alarga meus caminhos,
    é rio que se projeta no mar.

domingo, 12 de outubro de 2014

BORBOLETA

    NALDOVELHO

    Borboleta pousou
    numa folha de papel em branco
    deixada em cima da minha mesa,
    queria escrever um poema
    intitulado sobrevivência.
    Samambaia chorona
    pendurada no canto da sala,
    tremia de medo.

sábado, 11 de outubro de 2014

IMPRESSÕES DIGITAIS

    NALDOVELHO

    O tempo deixou
    suas impressões digitais
    em meu corpo.
    Pele ressequida, rugas,
    ranhuras...
    Deixou também
    olhos sem brilho,
    ferrugem espalhada
    pelas dobras,
    coração ora acelerado,
    ora lento demais.

    O tempo deixou
    suas impressões digitais
    em meu corpo,
    mas deixou também seus gostos,
    e lapidou em mim,
    certa delicadeza
    que quando jovem
    eu não sabia apreciar.

    O tempo deixou
    suas impressões digitais
    em meu corpo.
    Deixou sensibilidade do outono,
    e me inundou de ternura,
    tanta que chega
    a escorrer dos meus olhos...
    Lágrimas que no passado
    eu tinha vergonha de chorar.