quarta-feira, 30 de abril de 2014

FEITIÇO - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

    NALDOVELHO

    Lembranças, guardados,
    segredos, histórias, enredos,
    fotografias, paisagens,
    algumas amareladas,
    outras desbotadas,
    ainda assim as guardo,
    vez por outra ainda sangram.

    Seu rosto em três por quatro,
    seu sorriso a invadir meu quarto,
    e eu não consegui fotografar sua voz,
    mas capturei os seus lábios
    e em minha boca o seu gosto,
    capturei também os seus olhos,
    castanhos, redondos, tamanhos,
    e na esperança de eternizá-la em sonhos,
    mandei restaurar e ampliar.

    Na caixinha de delicadezas
    um lencinho bordado,
    um par de alianças
    com nossos nomes gravados,
    um cacho dos seus cabelos,
    e num pequeno e delicado poema
    sua letra redondinha,
    palavras ternas, fantasia.

    Toda a vez que chega o outono
    e entardece em tons de dourado,
    eu vou até a janela do quarto
    e pronuncio, repetidas vezes, o seu nome,
    e como se fosse um mantra,
    um feitiço que eu faço
    para você nunca me esquecer.  

domingo, 27 de abril de 2014

AINDA GUARDO O SEU LENCINHO - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS



NALDOVELHO

Numa pequena vila, pertinho de onde eu morava, existia uma casa avarandada com jardins que invadiam a calçada e lá, eu conheci uma menininha de cabelos pretos e escorridos, nariz arrebitado e atrevido, que numa noite fria de outono acenou para mim. Pediu que eu me sentasse ao seu lado e assim sem mais nem menos incendiou meu coração. E ela me olhou com seus olhos de tigresa, e eles brilhavam como esmeraldas, coisa mais linda de se ver.

Sentados na varanda, ela fez ferver o sangue do aprendiz de poeta, falou coisas bonitas, beijou beijos molhados, saliva com gosto de amoras, e eram quentes e ousados, e enlouqueceram o menino que atrevido ousou acariciar suas pernas, que não sabia mais o que fazia, que levado pela energia daquele momento mágico, vibrou e imaginou um sonho povoado por um romance que mais tarde ele viria a saber, nunca iria acontecer.

E de repente ela se levantou, e tirado nem sei de onde, me deu um pequeno lencinho perfumado, que trazia o seu nome bordado em delicadas linhas vermelhas, e no centro do lenço amoras, uma rosa e um pássaro com as asas abertas, pronto para voar. Depois, me olhou assim de soslaio, me beijou com carinho e com um sorriso triste, disse adeus e entrou.

No dia seguinte, voltei lá feito um desesperado, para um novo e necessário encontro, mil perguntas fervilhavam em minha mente, tantas coisas a serem ditas... Mas a casa estava fechada, nem uma viva alma respondia, e o vizinho que morava ao lado a estranhar minha aflição e interesse, apressou-se a me dizer que faz tempo a casa estava abandonada, pois a menininha que ali vivia, havia morrido de uma trágica queda numa tarde ensolarada de novembro quando colhia amoras em seu quintal.

Durante um bom tempo, todos os anos, entre os meses de setembro a novembro, uma vez por semana, eu passava por lá e deixava naquela varanda um pratinho cheio de amoras, só para acarinhar a menininha que eu mal pude conhecer.

Vez em quando eu sonho com ela. Outro dia após escrever mais um poema, tive a nítida impressão de ouvir sua voz a me dizer: eu posso falar com você? Ainda guarda o meu lencinho?


A vila não mais existe, construíram por lá um prédio de dez andares. Pena! Mas no fundo do meu quintal eu plantei uma amoreira e lá a passarinhada se diverte. É uma espécie de santuário, onde numa caixinha de madrepérola repousa aquele lencinho, numa homenagem que eu faço a uma pequena história de amor, um sonho que eu não pude viver.    

sábado, 26 de abril de 2014

A OUTRA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS


NALDOVELHO

(INSPIRADO NO POEMA O SUICÍDIO DE BELVEDERE BRUNO)

Eu soube que ela tentou se matar!
Que vestiu sua melhor roupa,
batom vermelho em sua boca,
suave e delicioso perfume em seu corpo,
cabelos soltos, bem escovados,
janelas escancaradas para a madrugada,
sem medo de se mostrar.

Eu soube, e quem contou,
disse que aquela era a mais bela imagem
que a vida poderia celebrar.

Um cálice de vinho suave e inebriante,
um sorriso abusado e provocante,
não mais a futilidade de outrora,
nem a angústia que nos devora.

E ela sabia que não seria fácil
matar a mulher de ontem,
esconder o seu corpo numa mala,
jogar a chave fora, despertar.

Eu soube que ela tentou se matar.
A princípio, não acreditei,
mas quando a vi pelas ruas,
não tive dúvidas, ela estava morta!
Naquele momento percebi,
que havia outra em seu lugar
e que esta tinha um brilho especial nos olhos,
um jeito todo peculiar de caminhar.

Vez por outra, quando passo por ela,
ainda percebo uma sombra lá no fundo.
É a outra que chora e pede perdão
pelas escolhas que destruíram suas ilusões.


Já de noitinha, perto das vinte e duas, uma lua maravilhosamente cheia invadiu meu quarto, mês de março, princípio de outono, Chet Baker a desfiar desenganos e eu na tentativa de me organizar em meio aos meus próprios escombros, nem poderia supor o quê as próximas horas iriam me reservar. De repente, um vulto de mulher envolto em névoas começou a gritar desesperadamente de dentro do meu espelho:

- Ela quer me matar!
E repetia:

- Mas, ela quer me matar!

O quanto mais ela gritava, mais densa a névoa se tornava, mais difícil era perceber seus traços, seu rosto, seu corpo. Tentei acalmá-la, rezei repetidas vezes, na intenção de produzir com isto um mantra que pudesse criar um ambiente de energias benfazejas e assim apaziguar seu espírito...

Pouco a pouco o quarto foi tomado por uma brisa suave, um perfume envolvente, e ela apesar do choro ainda expressivo, não mais gritava e se aquietou.

- Moça, acalme-se, dê o seu recado, mas faça-o com suavidade, de forma a que eu possa entender e quem sabe ajudá-la.

Assim como por encanto, percebi que uma luz quente e aconchegante, vinda nem sei de onde, era projetada para dentro do espelho e a imagem antes enevoada, como num passe de mágica começou a se delinear, seu rosto a se revelar, e eu pude então perceber: mulher, cerca de quarenta anos, cabelos um tanto ou quanto desgrenhados, fios esbranquiçados misturados aos castanhos claros queimados, mal tratados, olhos esverdeados, bonita ainda, é bem verdade, apesar das marcas deixadas pelo desespero, pelas lágrimas convulsivas, pelos gritos de dor.

Logo reconheci, a amiga que faz tempo não via. E eu sabia que ela tentara se matar! Que vestira sua melhor roupa, batom vermelho em sua boca, suave e delicioso perfume em seu corpo, cabelos soltos, bem escovados, janelas escancaradas para a madrugada, sem ter medo de se mostrar.

Eu soube, e quem contou, disse que aquela era a mais estranha e bela imagem que a vida poderia celebrar.

Vi então em imagens nítidas, como se uma tela ali houvesse, a mesma mulher transformada em outra e, em sua mão um cálice de vinho suave e inebriante, em seu rosto um sorriso abusado e provocante, não mais a fragilidade de outrora, nem a angústia que nos devora.

E novamente a mulher presa em meu espelho, dizia:

- Ela quer me matar! Queimou todas as minhas roupas, jogou fora os meus pertences, colocou na lixeira do prédio minhas bonecas, minhas preciosas bonecas, rasgou meu diário e gritou como uma louca, que eu estava morta, que ela agora era outra!

Naquele momento, percebi claramente o quanto aquela angustiada mulher lutava e que ela sabia que não seria fácil vencer a mulher que hoje se revelava e que impiedosamente tentava sufocá-la, matá-la, esconder o seu corpo numa mala, jogar a chave fora!

Eu soube que ela tentara se matar. A princípio, não acreditei, mas quando vi aquelas imagens que revelavam a fragilidade da mulher de outrora e a determinação da mulher que hoje, não tive dúvidas, ela havia conseguido. A mulher de antes estava morta, e seu espectro preso dentro do meu espelho, lutando para se libertar.

Desde aquele dia, toda a vez que Chet Baker invade meu quarto, eu a percebo lá no fundo do meu espelho, e ela chora, e pede perdão pelas escolhas que destruíram suas ilusões.

E aí, pacientemente eu a trago para fora, materializo-a em meu quarto, e carinhosamente tento convencê-la a assumir que a mulher de outrora deve permanecer morta e que assim sendo ela estaria livre para viver uma nova vida junto daquela outra que caminhava pelas ruas como se lhe estivesse faltando um pedaço, que sem saber explicar direito a inquietude, sente falta de suas bonecas, mas não quer abrir mão de sua nova roupagem, nem das possibilidades de escolhas, ainda que erradas, pois esta era uma viagem da qual ela não iria abrir mão.

E eu a lhe dizer:

- Vá! Você esta livre, seja feliz e traga paz ao seu coração! Na vida, muitas vezes é preciso se desconstruir por inteira, remover todo o entulho e se reerguer num novo ser, e você só vai poder se sentir plena quando se integrar a sua nova história, doa o que doer.



FANTASMA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS


NALDOVELHO

Manhã bem cedo, escancaro a janela, café quente e encorpado, cama desarrumada, travesseiros pelo chão e eu me ponho a rir sozinho das bobagens de amor que pela vida eu fui capaz de dizer no calor da paixão. Olho para o espelho e a única coisa que consigo perceber é o silêncio de uma superfície fria e opaca, nada de novo nas horas, só a nostalgia no ar.

Enxugo o rosto molhado pela chuva fina que me invade o quarto, e um vento frio me traz assombro e diz que a solidão é coisa pouca, você foi embora faz tempo, mas deixou marcas por toda a casa, seu perfume, algumas peças de roupa e só de sacanagem, uma calcinha e um sutiã.

Já são quase oito horas, lá fora já não chove, e um sol amarelinho esboça um sorriso, e as pessoas que passam não percebem a minha presença nublada na sacada, o meu olhar bisbilhoteiro, a minha necessidade de descobrir histórias, dramas, suas vontades, suas paixões.

Por lá, converso com as plantas para espantar a solidão, troco confidências com azaleia e renda portuguesa ri da minha ingenuidade, e afirma:

- Ela é igual ao teu espelho, nem tudo que diz é digno de crédito, muita coisa ela inventa só para te agradar.

E eu bem sei, que muito do que me é dito, o é apenas pela vontade que ela tem de que eu abra portas, desmanche teias, espante fantasmas, desconstrua minha loucura e apazigue meu coração.

Volto para o quarto e percebo ranhuras na parede, aquela, em frente ao espelho... Tento descobrir por ali significados, talvez versos de um poema que a casa desesperadamente tenta deixar registrados. Meus olhos inquietos buscam palavras, metáforas, coisas que aconteceram muito antes de nos dois. Vida de escritor é uma merda! Passo dias e dias a procura de uma chave, de um tema, de um som.

Caminho pela casa, atravesso a sala, abro a porta de entrada e vou até a varanda. Por lá um cachorro de louça vigia a porta, traz firmeza, espalha suavidade. Perto de um caramanchão no jardim, uma pequena fonte, por incrível que pareça, traz um pouco de lucidez ao ambiente e rosas trepadeiras mostram o quão belas, apesar dos espinhos, elas podem ser. A vida tem prazeres que ninguém deveria ter que abrir mão!

Já são dez horas, mais um café para atiçar o dia, e a lembrança de uma boa cigarrilha ainda atormenta a minha mente, que fervilha de ideias, tantas histórias, mas nenhuma com final feliz. Por estranho que possa parecer, o povo gosta mesmo é de um bom drama!

O livro de contos já está quase pronto, a tapeçaria também! Sua calcinha e o seu sutiã, guardados onde só eu possa ver. O seu cheiro permanece em meus dedos, o seu olhar travesso ainda me assombra e quando ando pela casa costumo sentir seu perfume. Às vezes escuto os seus passos, sua voz, sussurros, indecências... Você não se emenda!

Acho que só vou me livrar do seu fantasma no dia em que eu morrer e aí quem sabe eu possa de novo ter você.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

O ESPELHO - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS


E por aquele espelho surgiam figuras estranhas, imagens, às vezes até de lugares, vultos de pessoas, alguns mais ou menos definidos, outros tão claros como se verdadeiramente presentes, palpáveis, e assim então, sem que ao menos fossem convidados, materializavam-se e tomavam conta do ambiente. A maioria deles, conhecidos que volta e meia povoam meus sonhos, ou então, velhos camaradas que por um tempo caminharam lado a lado comigo... O interessante é que todos se mantinham jovens; só eu envelhecera, só eu jazia soterrado sob as agruras do tempo. Algumas figuras, desconhecidas ainda, como se por aqui estivessem, só de passagem, portadoras de alguma mensagem, ou apenas curiosas em conhecer o lugar. Aquele espelho era como um portal, uma maravilhosa e inquietante passagem, um caminho de ir e de vir. Só que existiam também aqueles, os compadres!

E assim foi, numa terça-feira, noite quente de março, de um ano qualquer, nem faz muito tempo, quase meia-noite, e um vulto, aparentemente familiar saltou do espelho, chegou para uma conversa, como se tivesse algo a contar e amistosamente falou:

- E aí meu compadre, quanta saudade! Acho que já faz uns quatro anos... Pois é meu amigo, tantas esquinas eu dobrei, que um dia não pude mais voltar, meu tempo acabou; um acerto de contas, um cabra que comigo esbarrou, não gostou e de repente, perdi!  

De pronto reconheci a voz! Amigo de muito tempo, companheiro das ruas, ombro a ombro pelas madrugadas desertas, e no muito que aprontávamos por aí. Fiz força para me recompor, pois a imagem que diante de mim se materializava não era nem um pouco agradável, mas prontamente respondi:

- Porra Magrelo, essa história de novo? Lembra-se de quando por aqui correu a notícia de que você havia morrido? Willian até me contou que foi à sua missa de sétimo dia e que a sua tia, coitada, desconsolada, chorava e dizia o quanto você era um cara boa praça. E depois você aparece no portão da minha casa, quase me mata de susto, vivinho da silva!

- Pois é meu compadre! Todo safado depois de morto vira bonzinho, principalmente no coração de uma tia, de uma mãe, ou de um amigo fiel. Só que desta feita é verdade, tanto fiz que um dia veio a cobrança e sinceramente até agora eu estou sem entender o porquê!  O cabra nem era meu desafeto, por quase nada, meteu o dedo e deixou quatro balas alojadas em meu peito, não deu nem para sentir dor.

- Magrelo! Num tem nem muito tempo, liguei para sua filha, para saber de você e ela meio assustada, sem saber direito o que dizer... Ela já sabia?

- Não meu amigo! Ela de nada sabia e ainda não sabe. O cara fez o serviço completo, foi lá pras bandas do Pantanal. Depois dos tiros, ele me jogou num braço de rio, era tempo de cheia, área alagada, rapidinho meu corpo foi devorado pelos bichos, nada sobrou! Quanto a ficar assustada, acho que deve ter sido por conta das confusões que eu vivia aprontando e como ela não te conhece direito, achou que fosse a polícia ou alguém querendo cobrar alguma coisa.

- E agora?

- Sei não meu amigo, por aqui é tudo meio sombrio, fico andando pelas ruas, quase ninguém fala comigo, e os que se aproximam estão iguais ou bem pior do que eu. As balas parecem que ainda estão alojadas em meu corpo, se eu toco nas feridas sinto dor, e percebo um cheiro ruim de carne estragada, mistura de sangue e pólvora... Durmo pouco, aos sobressaltos, pois ao menor descuido vem alguém e tenta me esculachar. Levei um tempo para me situar, nos primeiros momentos não me lembrava de nada, nem sabia direito o meu nome, mas devagar a consciência foi voltando, e eu ali a assistir os bichos a devorar um corpo, que só mais tarde eu percebi que era o meu. Meu compadre, que sensação horrível!

- E depois cara?

- Assim que consegui, saí rapidinho dali, e ao relembrar meu passado, voltei para aquela nossa esquina, e lá estou desde então. Virei o dono daquele encruzo! Tem até um povo que por lá fica em volta de mim, acho que buscando proteção ou companhia... Eu só sei que de lá pra cá, três sujeitos, todos, vítimas do mesmo maldito, por aqui chegaram e aqui estão. Acho que por terem tido o mesmo fim, estão em busca, como eu, de uma desforra. Aquele safado não perde por esperar.

- Tem alguma coisa que eu possa fazer meu irmão? Sei lá! Orar, mandar rezar uma missa, acender uma vela...

- E eu acredito nessas coisas meu compadre? Lá no meu encruzo, tem até um monte de gente que vem acender velas, fazer encomendas, deixam até uns presentes, mas eu não sei nada disso não! Este povo tá tão perdido quanto eu! Uma coisa é certa: a vida continua, isto eu já sei! Mas Deus, se é que Ele existe, passar por lá vai ser um desacerto, a galera é fio desencapado, tudo revoltado na vida, melhor dizendo, na morte, com alguma conta para cobrar ou com muitas pra pagar.

- E como é que você chegou até aqui? Não tem muito tempo que estou morando nesta casa, a antiga foi vendida, pois depois que meus pais morreram, não havia mais motivos para que por lá eu permanecesse.    

- Te vi passando outro dia lá na nossa esquina, logo te reconheci e vim atrás. Quando cheguei por aqui encontrei este portal, e resolvi entrar, bater um papo, matar a saudade dos bons tempos e quem sabe, o compadre não me faz um favor?

- É só falar cara! Se tiver dentro do meu alcance eu corro atrás.

- É que meu neto nasceu semana passada, quem me contou foi o Santarosa, lembra dele? Pois é, também está por lá, tem muitas dívidas, pois em vida andou metido com magia, matança de bichos, enganou muita gente, firmou compromissos com o povo das ruas, e agora é meu braço direito, toma conta do encruzo quando eu saio por aí, o malandro sabe das coisas! Mas como eu ia dizendo, meu neto nasceu e a minha filha cismou que vai batizar com o meu nome. Peça a ela pra fazer isto não! Já chega um, este nome foi um peso em minha vida, coisa ruim, desde o dia que eu nasci, era como se eu tivesse predestinado, marcado com uma etiqueta e desse jeito, com este nome não vai dar boa coisa, não vai prestar! Aproveita e diga que eu estou morando na Argentina, ela nem vai desconfiar, pois sabe que eu já morei por aquelas bandas e tenho gente por lá. Diga que recebeu um telefonema e que eu só não fiz contato direto com ela por conta das minhas encrencas, tem muita gente querendo me cobrar e eu não quero colocá-la em risco. Diga, principalmente, que eu estou bem, e que assim que as coisas esfriarem eu dou notícias. Melhor assim! Não tem necessidade dela ficar sabendo do meu fim.

- Tá certo compadre, eu passo o recado que você pediu. Mas perdoe o velho amigo, mas eu vou pedir por você, Deus é grande, e há de socorrê-lo, curar suas feridas, ampará-lo.

- Porra cara! Para com estas conversas, não perca seu tempo não, pois enquanto eu não cobrar o que aquele filho da puta me deve, não vou sossegar.

Olhei carinhosamente para ele, lembrei-me das coisas que passamos nas ruas, de toda a sua triste história, fechei meus olhos e rezei. Rezei silenciosa e contritamente para que ele fosse orientado, acolhido, resgatado... E ele então me falou:

- Sabe compadre, eu sinto falta de muitas coisas, dentre elas de um bom gole de cachaça, sentir a maldita ardendo em minha garganta, e também de puxar um fumo, serve cigarro! O povo até coloca essas coisas lá no meu encruzo, o Santarosa adora! Mas eu ainda não aprendi, não consigo tirar proveito. Tem uma erva por aí, um cigarro, ou uma boa aguardente? Quem sabe aqui assim materializado eu não consiga?

- Lamento meu compadre! Faz tempo não bebo, e deixei de fumar tem uns quatro anos, meu corpo pediu arrego e eu ainda quero ficar por aqui um tempo.

- Porra cara! Virou careta mesmo! Mas não dá para ser numa próxima vez?

- Dá não cara! Fiz promessa pros santos, fico bem longe dessas coisas, num posso quebrar! 

Uma gargalhada no ar, um cheiro forte, mistura de aguardente com erva da boa, e em mim, a certeza de que ainda vai levar um bom tempo para o amigo de tantas caminhadas encontrar seu rumo, apesar do tudo que eu possa orar por ele.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

DONA SANTA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS


Numa mesinha de canto numa parede acortinada que mal esconde uma luminosa janela: um elegante abajur e um livro de contos, Hermann Hesse. Ao lado da mesinha, protegida do vento, uma aconchegante cadeira de balanço, lugar preferido da velha senhora.

Numa jarra de cristal em cima da mesa, no centro da sala: monsenhor branco. Na parede à esquerda de quem entra pela porta da frente, acima de uma arca, um lindo quadro: paisagem campestre onde um menino e o seu cão pastoreiam suas ovelhas. Do lado direito, numa imponente cristaleira: taças, copos, louças, delicadezas, e em especial, um aparelho de chá de porcelana chinesa, herança de um antepassado, coisa do início do século passado, quase cem anos atrás. Na parede oposta à entrada da sala, bem ao lado de uma porta em imbuia e vidro que dá acesso ao corredor: uma rádio vitrola, coisa muito antiga, marca Telefunken.

Vou até a janela e abro um pouco mais a cortina, e lá fora vejo num bem cuidado e florido jardim: roseiras, azaleias, lírios, crisântemos, bromélias e jasmins, todos em animada conversa com as borboletas, as samambaias, e a passarinhada, como sempre, em animada algazarra, principalmente os colibris, ignoram tudo o que acontece aqui dentro.

Volto meus olhos para o interior da sala e acendo a luz de um belíssimo lustre de cristal, que todos os dias ao entardecer, abençoa a velha senhora em seu costumeiro chá, ao som, quase sempre, de música clássica: Chopin, Beethoven, Bach e muitas, muitas valsas vienenses. É bem verdade que não raro ela gosta de apreciar um bom jazz, Billie Holiday é sua preferida, Bill Evans também! Mas quando isto acontece, não é chá que ela toma! 

Numa poltrona, estrategicamente colocada ao lado da arca, um gato persa, lambe as patas e espiona a velha senhora que parece dormir docemente em sua cadeira, sonhando que esta valsando, ou então em pecado numa boate esfumaçada em Nova York. A velha senhora consegue trafegar com muita intimidade entre a aristocracia dos salões de outrora e os ambientes sombrios dos guetos de jazz. Dá até gosto de se ver.

Ninguém sabe ao certo o seu nome inteiro, nem desde quando ela está por aqui. Eu a conheço apenas como Dona Santa e vez por outra peço sua ajuda, pois ela ótima professora de português, ensina com esmero e trabalha com maestria e muita sensibilidade as possibilidades dos significados da palavra e por poesia, também, todo o seu brilho. Foi ela quem me ensinou a escrever poemas, e ainda hoje costuma revisar meus textos e não raro me dá uns bons puxões de orelha. Velha aristocrata que é, e que carinhosamente me chama de bardo.

Outro dia, ao chegar à sua casa, percebi que alguma coisa estava diferente, pois apesar de sempre bem humorada, ela estava muito sorridente, até um pouco eufórica, por assim dizer. Fiquei meio curioso e logo lhe perguntei o porquê de tanta alegria e ela de pronto respondeu:

- Pegue aquela carta em cima da arca, vou lê-la para você, meu filho!

E assim, foi logo se aconchegar em sua cadeira de balanço e pediu que eu lhe pegasse uma pequena manta que estava na poltrona e começou a ler:

- Saudosa santinha! Escrevo-lhe estas emocionadas linhas para comunicar que em breve estarei no Rio de Janeiro, e que se for do seu gosto, anseio por reencontrá-la, pois apesar da distância e dos tantos anos passados, nunca a esqueci, e hoje livre de todos os impedimentos, preciso, e tomara Deus que seja recíproco, colocar nossos assuntos pendentes em dia, resolvê-los e quem sabe, possamos ficar juntos até o fim dos dias. Assinado: Alceu.

Uma curta e significativa carta, e pela reação da velha senhora, um sonho a muito acalentado, uma dor escondida faz tempo, uma esperança que naquelas palavras se renovava.

Ela se levantou, foi até a arca e lá pegou uma pequena caixa, onde existiam, retratos, bilhetes, miudezas, coisas de sua intimidade que a ninguém era permitido ver, e disse:

- Tenho-o como um filho, e gostaria de dividir este momento com você.

Pegou na caixinha um retrato de um homem moreno e sorridente, já maduro, com seus cinquenta e poucos anos, e atrás do retrato uma pequena dedicatória, onde se lia: Eu sei que vou te amar, até o fim da minha vida!

Hoje finalmente era chegado o dia, e eu sozinho naquela sala, a espera do Alceu, e ele prometeu que vinha e nada era mais importante para o poeta do que recebê-lo, dar-lhe contas da velha senhora e por respeito àquele homem que eu não conhecia, mas que antecipava ser um cavalheiro, por tudo que nessa semana Dona Santa havia me contado; ajudá-lo e que sabe também ser ajudado.

Ela havia me dito que haviam sido grandes amantes, e pelo visto, o amor entre eles fora tão profundo que no semblante daquela mulher podia se sentir claramente a nostalgia, a saudade e a poesia que costumeiramente nos invade, quando lá traz se deixa uma história mal resolvida, uma perda sentida, uma dor sem ódio, sem mágoa, apenas a frustração de não ter sido vivida plenamente a paixão, um vazio de não poder se ter.

Chego mais perto da cadeira, e cubro carinhosamente o corpo de Dona Santa, vou até o telefone, e ligo para todos que posso, pois diante do desfecho daquela história eu não sei mais o que fazer.

Quando de repente, a campainha da porta, insistentemente, toca, e eu com lágrimas nos olhos atendo, e estranho: não percebo ninguém, só um vento frio que invade a sala, um perfume suave que toma conta do ambiente e uma incrível sensação de euforia pelo ar.

Volto para perto de Dona Santa e percebo que ela está de novo descoberta, cubro-a novamente, mas não consigo evitar um arrepio pelo corpo. Dona Santa traz em seus lábios entreabertos um sorriso doce, cheio de significados, sem dor ou nostalgia, finalmente feliz e em paz.
   

terça-feira, 22 de abril de 2014

PRIMAVERA, SETEMBRO, ANO DAS TREVAS - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS


NALDOVELHO

Loucura, solidão, clausura. A fresta de janela que eu abro só aumenta a tortura, não permite ao vento o acesso e o ar permanece viciado aqui dentro. Só uma nesga de luz me invade e não dissipa a escuridão. O pedaço de pão que ofereces não mata minha fome, engasga na garganta, só aumenta a minha sede e me causa aflição.

E nem adianta ligar o rádio, as músicas que tocam ferem meus ouvidos e as notícias que surgem sangram minha alma.  Não há nada de novo que mereça um sorriso, um poema, uma canção.

Jerusalém está em chamas, Trípoli apodrece nos escombros de uma guerra fratricida, Damasco, Beirute... Teerã afunda no fundamentalismo raivoso e o Pai a tudo observa e chora.

Por aqui: médica é assassinada a tiros na Gávea, dois homens morrem em tiroteio na Vila da Penha, mãe envenena e mata filha de oito meses na Taquara, moradores do Morro do Borel, na Tijuca, protestam por morte de garoto, homem é encontrado baleado na Abolição, morre menino baleado em escola na Ilha do Governador. Algumas das muitas notícias da semana, última de setembro, início de primavera, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Aqui como lá, e em todo o lugar, não há nada de novo nas horas e tudo caminha a passos rápidos para o naufrágio, para o caos.

O carinho que ofertas não cura minha dor, não seca minhas lágrimas, não acalma meu coração e o medo suprime meus poemas, emudece melodias, e o que permanece é o barulho surdo dos tambores a sufocar friamente toda a inspiração.

Olho pela fresta da janela e Te vejo, ainda, crucificado e percebo que estás vivo, sofrendo por teus irmãos.

Por piedade, tirem urgentemente este Homem da Cruz!


SINA DE POETA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS


NALDOVELHO

Queres boas notícias? Como, se também não as têm! Além do quê, é ofício do poeta transformar em beleza aquilo que é feio, dissolver coisas cristalizadas, desatar em nós os nós. É ofício sagrado materializar energias, emoções, falar da dor e do abandono, da saudade que se tem, da nostalgia que nunca se acaba, e de tudo aquilo que não nos faz bem.

Pois então minha amiga! Vamos pregar a Paz, mostrando a guerra e o quanto ela pode ser cruel? Vamos disseminar o amor, lamentando o desamor e o vazio que fica? Eu rogo pela presença chorando a ausência, pois você sabe o quanto um dia, seremos capazes de amar.

É sina do poeta, crescer pela inquietude, desafiar a maldição do tempo, sendo eternos enquanto poema, e infinitos em nossas sementes. É missão do poeta ser água que jorra da fonte e que prossegue irrigando em vertentes, e inunda toda esta terra. É nosso fardo e feitiço dizer da amargura que se carrega por tanta e tamanha loucura, pois Deus assim nos fez, e o que Ele nos pede? Crescer como arautos que somos dos conflitos que nunca se acabam, do desgaste que tanto consome, e da ironia da lapidação, transformando-nos de pedra bruta, em puro cristal, evolução! Esteja certa! O nosso acesso se faz entre os ais!

As boas notícias: é que continuamos na estrada, é que fomos escolhidos, é que somos fortes, é que a capacidade de transferir para nós o sofrimento do mundo é inesgotável, é que através do nosso pranto semeia-se no homem a capacidade de reflexão e de compreensão das coisas.

Num mundo perfeito não existirão poemas e todos seremos poetas. Num mundo perfeito seremos poesia, e o mais lindo dos enredos não será expresso em palavras, será um estado pleno de amor à Criação.



A PROCURA DE UM TEMA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS


NALDOVELHO

Manhã de inverno, fim de inverno. O dia é terça, o mês é agosto e o jornal traz noticias que eu não quero ler. São as mesmas de sempre, nenhum novo alento, ninguém que anuncie que um novo tempo esteja aí, já faz tempo, tentando nos surpreender. 

Mudam os personagens, às vezes o cenário, mas a história não; é sempre a mesma. Uma ajeitada no texto em busca de novos substantivos, principalmente adjetivos... Mudam a roupagem de um mesmo contexto para que pareça novidade e pronto!  É só publicar para que os mais desatentos, anestesiados, sedentos, possam se alimentar.  Compreender não precisa!  É só estar atualizado, globalizado, integrado ao novo milênio.

As novas notícias mais parecem carne passada, aparentemente fresquinha, que o sulfito maquiou. E é só verificar com cuidado para constatar o engano: pivetes, indigentes, assaltos, favela marginalizada que o traficante tomou; crianças delinquentes, já bem cedo armadas, são soldados infames de uma guerra urbana que ninguém declarou. A bala perdida sempre acha um inocente; um carro roubado que passa apressado, uma rajada de balas, cinco corpos no chão!  Acerto do tráfico, guerra de ponto, matar custa nada, nem precisa um motivo, quanta queima de arquivo! Foi encomenda doutor!  Só que por acidente, quem passava nem tão perto, também tombou!

Prostitutas crianças tão cedo nas ruas, inocentes, quase nuas, prontas para o prazer de algum respeitável senhor, com família, com filhos e de aparente dignidade; na realidade um desequilibrado que a sociedade acoitou, que quando surpreendido, foge, covarde e apressado para não ser exorcizado numa cadeia qualquer.

Sequestros relâmpagos ao cidadão desarmado, indefeso, ultrajado e ao mesmo tempo culpado por ser tão ausente, por ser conivente com algum engravatado que ao povo pilhou. Votar custa nada! O voto comprado, pois tem sempre um canalha se dizendo doutor.

O crime, o adultério, um marido enganado, às vezes um amante! Ainda se mata por amor! Melhor dizer, desamor. E a justiça emperrada e as leis complicadas, Alvarás, Liminares...  Cadê o bandido? Tem juiz na parada!  Obra superfaturada! Se um prende, o outro, solta! A policia impotente se dizendo inocente, muitas vezes envolvida, mal remunerada, falida. Já nem sei quem é o bandido! Só sei o quanto somos desprotegidos... Em quem confiar?

E tem mais notícias chegando: uma guerra não declarada, um atentado incoerente, crianças mortas dentro de uma escola! O orgulho de um povo  que não consegue explicar, justificar o massacre.  Coisas de uma nação que dorme com armas nas mãos. 

O fanatismo dos religiosos, sedentos de sangue, a escrever uma história de intolerância e de dor. E ainda tem gente que acredita em Cristo, em Maomé ou em Buda, pelo menos é o que dizem,  de facções divergentes, matando e pilhando o opositor.

Racismo ainda é uma chaga tão presente em nossos dias. Quantas raças irmãs, excluídas, discriminadas, marginalizadas, a buscar um espaço.  Muitos vivem num buraco, muitos morrem de fome, muitos não têm nem um nome.

Um continente infectado, olha a AIDS, cuidado!  A igreja incoerente, enclausurada em seus templos, preservativo é pecado!  Como conter o instinto?  Como impedir um sujeito de desejar o do lado e ao sair contaminado, contaminar um outro coitado? Quantas coisas enfiadas na cabeça tão confusa de um pobre pecador.

E assim anoitece, e continua o dilema, à procura de um tema para escrever um poema, mas só acho temas amargos.  Vou para a janela do quarto e é noite de lua cheia, às vezes ela é tão doce! Quem sabe, eu me inspire? Quem sabe, eu possa escrever uma história de amor, dessas com final feliz? Quem sabe assim apaziguar a minha dor?  Esse tipo de história faz sempre sucesso, tem tanta gente carente, solitária, em busca do amor. Quem sabe um dia eu possa virar escritor? Pois estou ficando cansado, correndo o risco de ficar ultrapassado, e de não ser mais aceito pelo mercado, e isto com sessenta e tantos ou poucos anos, considerado um velho, até mesmo inadequado por aqueles que só andam apressados e pensam como um computador.


segunda-feira, 21 de abril de 2014

FACA AFIADA - POEMAS DE LUZ E SOMBRAS

    NALDOVELHO

    Novela das sete, novela das oito, 
    faca afiada abre um sulco no rosto 
    da cidade sitiada por omissões e desgostos 
    e lhe expõe as entranhas de forma estranha, 
    revelando a vergonha que reside em nós.

    Revela o pivete, o sinal, a gilete 
    que na palma da mão agride a quem passa 
    e a lata de cola cheirando à esmola, 
    excremento infame de quem nada oferece.

    Revela o lodo, alguns pensam que é sangue, 
    a correr pelas veias, valas negras, sarjetas. 
    Revela o engodo a camuflar todo o nojo, 
    realidade maquiada, novela das sete.

    Revela o ardil, o Ar-15, o fuzil 
    e a bala perdida, mais um que partiu.  
    Revela os ritos, tribais, primitivos, 
    irmandades forjadas a ferro e fogo, feridas, 
    comandos encarcerados a governar nossas vidas.

    Revela a incoerência de que consome e mente, 
     faz questão de vestir o branco da paz, 
     mas depende de um branco pra fazer o que faz.

     Revela a cicatriz talhada em concreto... 
     Linha Vermelha e Amarela, acessos diretos 
     a transformar as pessoas em meros objetos, 
     sombras apressadas e pelo medo, acovardadas.

     Revela um padroeiro que morreu prisioneiro 
     e que até hoje agoniza caçador de si mesmo.

     Faca afiada abre um sulco na carne, 
     dilacera as entranhas e expõe toda a sanha 
     dos que acreditam que o povo é um mero estorvo, 
     que a justiça é um entrave e o traficante um detalhe, 
     e que apesar disso tudo, há sempre um lucro eminente, 
     ainda que ao custo de dores urgentes 
     paridas no ventre de tanta gente inocente, 
     anestesiados que estão, novela das oito, 
     se desligarem a televisão, morrem de inanição.